Trovadores, Jograis e outros tais... - Miguel Gonçalves


Resumo

O presente trabalho visa tratar, de uma forma genérica, um tema transversal a várias Ciências Sociais, nomeadamente à História e à Literatura. É um pequeno estudo sobre o poeta medieval peninsular do século XII. O homem e a sua obra, as origens, transmissores e períodos.

 Palavras-chave: Poesia; Trovador; Jogral; Amor; Amigo; Escárnio.

 

Na noite escreve um seu cantar de amigo

O plantador das naus a haver (…)

Fernando Pessoa, “D. Dinis”, Mensagem

 

Se, por um lado, os detentores da cultura medieval em Portugal, a partir do século XII, são os conventos, nomeadamente os de Alcobaça, Stª Cruz de Coimbra e do Lorvão, onde se realiza uma produção literária, de começo limitada a traduções, por outro, a par desta realização de carácter religioso, desenvolve-se uma literatura oral poética transmitida pelos jograis.

Jogral designa o cantador de canções alheias, geralmente compostas pelo trovador; no entanto, muitos jograis se manifestaram dotados de talento original e rivalizaram com os próprios trovadores(1).

Em termos de escala social, o jogral estava abaixo do trovador. Os jograis eram homens do povo humilde, pobres e sem nomes ilustres de família. De muitos deles, não se sabe hoje mais que o nome de batismo e uma alcunha. Figuram nos Cancioneiros um Nuno Porco, um João Zorro, um Fernão Esguio, um Airas Corpancho…Pagos pelo rei ou por algum fidalgo poderoso, para divertirem a corte, os jograis, a princípio, distinguiam-se dos trovadores por servirem apenas para cantar ou recitar versos feitos por outros, ou para acompanharem no instrumento musical o cantar do trovador. No entanto, muitos destes jograis acabaram por ser eles próprios bons poetas. Alguns eram antigos clérigos pobres, saídos por qualquer motivo dos conventos e que aproveitavam a instrução recebida e os dons poéticos para assim angariarem de terra em terra o seu sustento(2).

Sabe-se que já o rei Suevo Miro tinha na sua corte um jogral, século VII. Este cantador, não era mais que um agente cultural dos meios laicos, razão pela qual o meio clerical não apreciava os jograis.

Como referi anteriormente, o jogral não é um nobre, pode ou não frequentar a corte, está na sua atividade mais ligado á mímica e aos saltimbancos e vive num mundo da oralidade.

Com o aparecimento do trovador, o jogral apaga-se um pouco, pois o primeiro além de compor é nobre. Se anteriormente este cantador era maltratado pelos clérigos, agora é o trovador que vai estigmatizar o jogral nas cantigas de escárnio.

A partir do século XIV este mundo começa a declinar e o jogral dá lugar ao menestrel.

                                                                                                               

Outra figura de interesse histórico e literário é o segrel, personagem que somente surge na Península Ibérica. Eram cavaleiros-vilões, não nobres, ou só afidalgados, homens de armas muitas vezes aventureiros, servindo sob as ordens dos senhores mais poderosos do seu tempo. Andavam de corte em corte, ora guerreando ora trovando.

Estes segréis recebiam alguma paga ou favor pelas suas cantigas, o que não acontecia naturalmente com os trovadores de alta linhagem.

 

Por fim, temos os trovadores. O trovador designa, de modo geral, o fidalgo-poeta que compõe as suas cantigas gratuitamente, por prazer espiritual(3).

Após as Cruzadas dá-se uma revolução nos hábitos da sociedade francesa que, habituada aos luxos do oriente, chama os “mimi” a fazer representações numa vida esplendorosa. Aí a dona torna-se o centro de atração, depois de dignificada pelo Cristianismo. A Provença faz-se viveiro de trovadores, intérpretes dos sentimentos amorosos. Embora cristã, devia ser uma sociedade com grande liberdade de costumes.

Na Península, a guerra do fossado levava para longe os homens, o que dava à mãe um lugar de responsabilidade.

É, pois, neste ambiente social que, durante dois séculos, vai florir a poética trovadoresca. Esta poesia entra na Península nos séculos XII e XIII, onde se encontra com uma lírica autóctone, peninsular, de origem popular, que, ao contacto com aquela, ascende a literária(4).

 

Mas, quem eram estes homens? Quais as diferenças entre os trovadores do Languedoc e os peninsulares? Que é a poesia destes trovadores?

 

Começando pela última inquietação, Denis de Rougemont defende que a poesia dos trovadores da Provença é a exaltação do amor infeliz, ou seja, é o amor perpetuamente insatisfeito em que só existem duas personagens: o poeta que inúmeras vezes reedita a sua queixa e uma bela que diz sempre que não(5). Ou seja, a vassalagem amorosa, na Provença, era prestada a uma dama casada, daí, o sigilo, o trobar clus, a mesura provençal; entre nós, pelo contrário, essa vassalagem não compromete porque, em geral, é rendida à donzelinha, resultando uma poética mais sincera, menos convencional, mais porta-voz de um amor puro.

Enquanto que o trovador provençal rendia uma espécie de “vassalagem amorosa” a uma senhora casada, cujo nome se deveria ocultar, entre nós o poeta enamora-se duma rapariga solteira, apaixona-se por ela, faz-lhe a corte e chega a pensar que a escolhida poderá vir a ser a sua noiva.

O cerimonial psicológico que deveria acompanhar aquela vassalagem sentimental (domnei ou donnoi), em que a paciência, a timidez e a discrição tinham forte representação, envolvia a poesia occitânica num formalismo por vezes desconcertante. Esse formalismo concorre para o estiolamento da afetividade e por conseguinte, para a mentira poética(6). O facto da falta de sinceridade deste lirismo foi notado já no século XIII pelo próprio D. Dinis, que acusa alguns poetas provençais de não viverem a paixão amorosa:

                                                                                                                         

                                  Provençaes soen mui ben trobar

                                  E dizen eles que é com amor;

                                  Mais os que troban no tempo da frol

                                  E non en outro, sei eu bem que non

                                  Am tam gran coita no seu coraçon

                                  Qual m`eu por mia senhora vejo levar.

                                  

Será pertinente fazer uma reflexão sobre a conjuntura histórico/social em que este trovador provençal estava inserido. Verifica-se um grande facto histórico a dominar a século XII provençal: a heresia cátara, ou seja, este movimento religioso e o amor cortês desenvolvem-se simultaneamente no tempo (século XII) e no espaço (sul de França).

Que laços podemos encontrar entre os cátaros (os puros) e os trovadores provençais?

Por outro lado, o amor cortês assemelha-se ao amor ainda casto – e tanto mais ardente – da primeira adolescência. Assemelha-se também ao amor cantado pelos poetas árabes, na maior parte homossexuais, como o foram os primeiros trovadores(7).

Poderemos provar a influência da poética árabe na cortezia? Teriam estes trovadores suficiente cultura para conhecer essa poesia tão mística?

 

“Matando-me me fareis viver, pois para mim morrer é viver e viver morrer

Al Hallaj

 

Deixaremos estas interrogações para uma posterior reflexão.

Falámos assim dos homens cantadores e poetas do século XII, da sua origem peninsular e provençal, suas semelhanças e suas diferenças. Falemos agora um pouco da sua obra, isto é, das cantigas que eles cantavam, dos poemas que eles recitavam, das trovas que eles trovavam.

Na poesia trovadoresca encontramos as cantigas de amor, as cantigas de amigo e as de escárnio e maldizer.

As cantigas de amor (corrente provençal) foram trazidas para a Península Ibérica através dos séquitos das princesas (política de casamentos reais); das viagens primaveris (no tempo da frol) dos trovadores de castelo em castelo; peregrinações ao noroeste peninsular e pelas cruzadas. Esta cantiga consiste num elogio superlativo da dama ou num queixume pela coita de amor devida à indiferença ou desamor da dama.

Estas cantigas têm, pois, um carácter convencional e palaciano, atestando um requinte sentimental de feição eminentemente aristocrática. São poesias onde se repete a cada instante a afirmação do grande amor do poeta pela sua senhora (a palavra seria senhor pois servia para ambos os géneros). No entanto e por curiosidade, dois dos mais ardentes trovadores no louvor de sua Dama, Arnaut Daniel e o italiano Guinizelli, são colocados, no canto XXIV do Purgatório, no círculo dos sodomitas! O já citado Denis de Rougemont(8) pergunta se será censurável o facto de o cavaleiro cortês dar muitas vezes à sua Dama o título de senhor no masculino: mi dons (mi dominus) e na Península senhor (não senhora)? Sendo que os trovadores andaluzes e árabes faziam o mesmo! Responde o referido autor, que se trata pelo menos originalmente de simbolismo religioso.

Recuperando o nosso fio condutor, verificamos que é um amor raramente recompensado, sempre fiel, mas respeitoso e distante.

Na sua forma encontramos o dobre, isto é, a repetição da mesma palavra em cada estrofe; o mordobre, ou seja, repetição de palavras da mesma família; palavra perduda que é a existência de um verso – palavra – sem rima; a finda que é a estrofe final mais curta que encerra a síntese de ideia fundamental.

As cantigas de amor revestem, principalmente, três tipos: o descordo (diálogo), a cantiga de refrão e a cantiga de mestria (sem refrão).

Apresentam como estrutura, mais frequentemente três estrofes independentes e três estrofes ligadas entre si.

Para concluir sobre as cantigas de amor, podemos referir que a sua poesia é um trovar mais culto em que fala o trovador, a dama é de elevada estirpe social, o ambiente é palaciano e o sentimento é convencional.

 

Exemplo de uma cantiga de amor, ao jeito provençal, cantada por D. Gil Sanches:

 

                                  Tu que ora vens de Monte Maior

                                  Tu que ora vens de Monte Maior

                                  Digas-me mandado (recado) de mia senhor

                                  Digas-me mandado de mia senhor

                                  Pois se eu mandado

                                  Não vir, triste e coitado

                                  Serei, e gran pecado

                                                                                                                                            

                                  Fará se me não vale,

                                  Pois em tal hora nado

                                  Fui, que – mau pecado! –

                                  Amo-a apaixonado

                                  E nunca vi al!

 

                                  Tu que ora viste os olhos seus,

                                  Tu que ora viste os olhos seus,

                                  Digas-me mandado dela, por Deus,

                                  Digas-me mandado dela, por Deus,

                                  Pois se eu seu mandado

                                  Não vir……………………

 

A cantiga de amigo, genuinamente peninsular, é muito mais variada e colorida do que a de amor. Nelas já se consegue observar coisas ou temas mais exteriores, mais concretos e materiais: é o marinheiro (matalote) que vai embarcado; é o soldado que parte na hoste do rei a lidar com os mouros; que andou no bafordo (treino de armas) ou que foi no fossado.

Nas cantigas de amigo já é a donzela que fala, esta é da burguesia ou mesmo do povo, o ambiente é burguês, rural e doméstico e o sentimento é espontâneo. Podemos arriscar dizendo que é um cantar do povo diretamente ligada às romarias e ao fossado d`el rei.

Quanto às espécies, temos as bailadas ou bailias, cantigas de romaria, marinhas ou barcarolas, albas ou serenas, pastorelas. Temos também, quanto á forma, as cantigas de mestria, de refrão, paralelísticas e a tenção.

Para concluir, sobre as cantigas de amigo, saliento que sendo esta cantiga, criação peninsular, a língua que a cantava era o galaico-português. Estão muito ligadas à vida militar e religiosa dos séculos XII e XIII. A cruzada de reconquista e o eco das romarias animam as paralelísticas. Enquanto que o jovem ia no fossado, a sua ausência era, por vezes, prolongada e a namorada sentia-se inquieta e triste. Na cantiga de amigo de D. Dinis, “Ai flores, ai flores do verde pino”, ela pergunta pelo namorado às flores e obtém a resposta de que ele não demorará. Encontramos nestas cantigas alusões ao campo, aos costumes campesinos, referências às árvores, flores, aves, cervos ou fontes.

O elemento marítimo também está identificado tendo como “baliza” o eixo Vigo – Lisboa o que lhe dá uma característica nativa do noroeste peninsular.

Exemplo da mais antiga cantiga de amigo conhecida, datada de 1199 e atribuída ao rei D. Sancho I:

 

                                  Ai eu coitada!

                                  Como vivo em gram cuidado

                                  Por meu amigo

                                  Que ei alongado!

                                  Muito me tarda!

                                  O meu amigo na Guarda!

 

                                  Ai eu coitada!

                                  Como vivo em gram desejo

                                  Por meu amigo

                                  Que tarda e nom vejo!

                                  Muito me tarda

                                  O meu amigo na Guarda!

 

Finalmente, temos as cantigas de escárnio (aquelas em que se faz sátira velada), isto é, é uma sátira feita per palavras cubertas, sem revelar o nome da pessoa ou pessoas visadas e as de maldizer (as de sátira descoberta), ou seja, é uma cantiga feita mais descubertamente, revelando assim, a identidade da pessoa satirizada.

Umas e outras podem revestir formas semelhantes às das cantigas de amor e de amigo.

A sátira trovadoresca caracteriza-se pelo seu particularismo e constitui um importante documento histórico-social, revelando-nos muitas discriminações, convencionalismos, preconceitos ou problemas políticos. Vejamos alguns exemplos, objeto de sátira: o convencionalismo da morte de amor como tema literário (cantiga de Pero Garcia Burgalês a Ruy Queimado); o escândalo das amas, documentando a discriminação social pela qual o trovador não devia dirigir as suas cantigas a mulheres de condição servil; o ciclo da entrega dos castelos (crise política que se sucedeu à deposição de D. Sancho II e dividiu a nobreza em dois partidos); o tema do fidalgo arruinado e a polémica entre trovadores e jograis.

Estas cantigas eram muitas vezes uma forma de desafogar o ódio contra um inimigo, outras vezes não passavam de um jogo de desenfado – maneira alegre de passar o tempo. Exemplos do que referi, temos D. Dinis a criticar Melyon pecador ou D. João Peres de Aboim a criticar o jogral Lourenço por se meter a trovador.

                                                                                                                                       

Para concluir, direi que, ao lado da poesia delicada e benigna das canções amorosas que se singularizam pela nobreza de sentimentos e pelo respeito dispensado a Deus e à mulher, floresceu no século XII uma poesia combativa e demolidora, cheia de asperezas e até, de indignidade, são as cantigas de escárnio e de maldizer(9).

Exemplo de uma cantiga satírica, a do trovador Guilhade que troça de uma mulher:

 

                                  Ai, dona fea, fostes-vos queixar,

                                  Porque vos nunca louv`en trobar;

                                  Mais ora quero fazer um cantar;

                                  En que vos loarei toda via;

                                  E vedes como vos quero loar;

                                  Dona fea, velha e sandia.

                                                        

   Este pequeno e breve trabalho, como referi no início, servirá para homenagear e recordar este magnífico património imaterial da cultura peninsular.

 Podemos facilmente, no nosso imaginário, imaginar o trovador a recitar os seus versos, um tocador acompanha-o na cítola, harpa ou viola de arco, uma mulher baila e marca o compasso com o adufe, espécie de pandeiro que nos ficou dos árabes.

No dizer de Graça Videira Lopes, “…poesia galego-portuguesa, o grande oceano por achar…”.

 


Miguel Gonçalves

Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"

ENSAIO

Edição 2021

 

 

 

 

 

 

NOTAS:

[1] Vide Maria Leonor Buescu, Apontamentos de literatura Portuguesa, Porto Editora, 2ª edição, Lisboa, 1965, p. 16.

[2] Vide Ester de Lemos, Na aurora da nossa poesia, coleção educativa, série G, nº 2, plano de educação popular, Coimbra, 1955, pp.57-58.

[3] Vide Maria Leonor Buescu, op.cit., p. 16.

[4] Vide Lilaz Carriço, Literatura prática, Porto Editora, vol.1, 5ª edição, Porto, 1987, p. 71.

[5] Vide Denis de Rougemont, O amor e o ocidente, Vega, 2ª edição, 1999, p. 64.

[6] Vide Feliciano Ramos, História da literatura Portuguesa, livraria Cruz, Braga, 1950, p. 21.

[7] Vide Denis de Rougemont, op. cit., p. 111.

[8] Vide idem, ibidem, p. 88.

[9] Vide Feliciano Ramos, op. cit., p.25.


Bibliografia

· BUESCU, M. Leonor, Apontamentos de literatura Portuguesa, Porto Editora, 2ª edição, Lisboa, 1965.

·  CARMO, Mário e DIAS M. Carlos, Introdução ao texto literário, Didática Editora, 10ª edição, Lisboa, 1986.

·   CARRIÇO, Lilaz, Literatura prática, Porto Editora, Vol.1, 5ª edição, Porto,1987.

· LEMOS, Ester, Na aurora da nossa poesia, coleção educativa, série G, nº 2, Plano de educação popular, Coimbra, 1955.

·   RAMOS, Feliciano, História da Literatura Portuguesa, Livraria Cruz, Braga, 1950.

·   ROUGEMONT, Denis, O amor e o ocidente, Vega, 2ª edição, 1999.

 

Recursos audiovisuais

·         Cantigas de trovadores, CD, 2015, A bela e o monstro.

 

 

 

 

 

                                                                           

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