Epopeia - por Nuno de Sousa | PREMIADO



O dia tinha começado frio, mas o sol, viajando no seu percurso ascendente trazia algum calor latente, que se infiltrava lentamente pelos compartimentos, fazendo escorrer a humidade pelas paredes, criando pequenas poças junto às mesmas.

As costas do rapaz ficaram molhadas apenas se encostou à parede, mesmo à esquina do pórtico que dava acesso ao claustro. A palma da mão direita ficou encharcada no momento em que a encostou, aberta, à parede. Com a esquerda fez um gesto ao pajem que o acompanhava, ordenando que fizesse o mesmo, o que foi imediatamente obedecido. Fez um gesto com o dedo aos lábios, exigindo silêncio, ao que o pajem assentiu com a cabeça. Satisfeito, indulgenciou-se ao que pretendia, estendendo a cabeça em direcção ao pórtico, pretendendo ouvir, sem ser visto, o que os dois homens falavam no claustro.

Com o sol já a embater nas áleas que ladeavam o claustro, a estadia no local tornava-se agradável, convidando à conversa.

Os dois homens conversavam de pé, claramente fazendo tempo, aguardando algo ou alguém, distraidamente conversando. Um deles, de barba branca, hirsuta, carregava consigo um livro que agarrava firmemente com a mão esquerda, envolvendo com os dedos a lombada, escura e descaracterizada, com letras douradas na capa. As suas roupas apesar de velhas e fora de moda, denotavam algum nível de cuidado com a sua aparência ou, se calhar, com a ocasião.

A sua voz rouca e calculada indiciava a introdução às artes da dialética, ou mesmo às artes dramáticas, com perfeita colocação do tom, e da intenção no diálogo que mantinha. Ouvia atentamente e respondia detalhadamente e com grande cuidado às perguntas do segundo homem, que o questionava com interesse.

Este apresentava-se ricamente vestido, e aparentava ser o homem de maior estatuto entre os dois, não só pelo seu trajo, como pela forma altiva como se posicionava e o tom de voz com que questionava o primeiro.

O primeiro homem não aparentava sentir-se intimidado, demonstrando-se, não obstante a atenção e o claro interesse, ou necessidade, de agradar, algo desdenhoso da situação em que se encontrava – para ele, parecia que o resultado positivo ou negativo daquela entrevista lhe era perfeitamente indiferente, regendo-se por outras regras que não revelava em toda a sua postura.

~

- Dizei-me então, mestre, o que o levou a escrever o livro? – perguntou o homem ricamente vestido ao outro. Este, com serenidade, sorriu, mostrando uns dentes amarelados, mas perfeitamente regulares, por entre a barba hirsuta, virou-se para o claustro, olhando ligeiramente para cima, em direcção às decorações dos arcos do outro lado do jardim, sendo, no entanto, claramente visível que a sua mente deambulava por sítios distantes e imperscrutáveis

- O amor, indubitavelmente – disse este, quase murmurando. O seu interlocutor pareceu surpreso,
arregalando um pouco os olhos. Este aproximou-se um pouco, claramente interessado

- Como assim, o amor?! – perguntou, o corpo ligeiramente debruçado, olhos fixos na expressão do primeiro homem. Este sorriu vagamente, embebido nas suas deambulações mentais, e durante uns segundos não respondeu. O segundo homem, claramente incomodado com o tempo decorrido sem resposta, recuou, apoiando a mão na balaustrada do arco, e olhando também para fora. O primeiro homem piscou o olho, sorrindo, e virou-se para o segundo

- Sim, claro! O amor. – Reiterou – Mas não um amor romântico. – E inspirou fundo, o seu porte ganhando enlevo, o olho brilhante, virando-se para fora, o perdendo-se na distância do espaço e do tempo – É um amor grandioso e incondicional – falou, a voz perdendo-se num sussurro, carregada para sítios distantes por ventos e maresias, muito para além daquele momento e daqueles dias. Ficaram ambos em silêncio um momento, e o primeiro homem, saindo do seu enlevo, explicou ao segundo

- Os gregos do antigamente chamar-lhe-iam Ágape – e sorriu, pensando que com esta sua explicação erudita, o segundo homem não teria coragem de continuar a conversação. Este, olhando por sua vez para o claustro com um olhar perscrutante, ficou pensativo. O primeiro homem sentou-se no banco de pedra que ladeia o arco, cruzou a perna e recostou-se. O segundo homem, acordando do seu transe, imitou-o, dizendo

- E, mestre?! Explique-me esse seu amor – e pausou, tentando recordar-se da palavra – ágape, como motivo para o seu livro – disse, fazendo sinal com o queixo para o livro que o primeiro homem, o mestre, transportava na mão. Este sorriu abertamente e com o prazer, e eventualmente esse amor de que falavam, brilhando-lhe no olho que lhe restava, discorreu

~

Sabeis Senhor, que existe um povo que, enquanto pequeno em número, e tamanhos de corpos, é, no entanto, grandioso de muitas maneiras, prevalecendo contra todas as contrariedades, por maiores e tormentosas que estas possam ser.

Sabeis Senhor, que existe um povo conhecido por, desde as antiguidades que os romanos nos recordam nos seus escritos, não se governa, nem se deixa governar, rebeldes em todos os seus actos e palavras, e são, no entanto, honrados, fiéis, pacatos e serenos nos seus intentos.

Sabeis Senhor, porventura, que existe um povo que, por se identificar com as suas próprias maneiras, os seus próprios quereres, os seus próprios ideias, e sob a égide de um grande Rei, do qual o nosso descende, se revoltou contra os seus vizinhos, mais numerosos, mui poderosos e raivosos, e que, enfrentando adversidades incalculáveis, no entanto perseverou nos seus intentos, conquistando a sua liberdade e autonomia.

Sabeis, Senhor, também, que existe um povo que, governando por grandiosos Reis, se virou contra os infiéis, e, contra díspares números, reconquistou as terras de Coimbra aos Algarves, conquistando desta forma os favores de sua santidade, representante do senhor neste Velho Mundo

Sabeis Senhor, com certeza, que existe um povo que, confrontado novamente com a perfídia dos seus vizinhos, novamente se fez a campo, defrontando-o, ao comando D’El Rei e seu Condestável, novamente demonstrando a sua veemência de intentos, refirmando desta forma a sua necessidade de liberdade e autonomia.

Sabeis Senhor, que existe um povo que, enquanto pacato e sereno, não tolera perfídias e opressões, e que as combate, de espada em punho, de peito erguido e firmeza nos gestos, de olhos brilhantes, corajosamente disposto a entregar a vida por algo que o sabe transcender, algo maior que ele próprio, uma grandeza de alma que nos recorda os deuses e heróis gregos, e os cavaleiros das fábulas de Artur.

Sabeis, Senhor, que existe um povo, nos fins da terra que, ladeado a Leste por bravo inimigo, decidiu, enfrentando a ira e fúria dos Oceanos, fazer-se ao mar, comungar com essa garganta de vidas, e, sacrificando-se nele múltiplas vezes, para tristeza e saudade de mães e esposas e filhos, descobriu, desbravou, buscou novos saberes, novos conhecimentos e novas terras, incluindo-as como parte deste Velho Mundo, onde piedosos velhos ditam leis e exploram saberes.

Sabeis, Senhor, que existe um povo que, enquanto pacato nos seus gestos e estares, é bravo e rebelde, corajoso e irreverente, e que, por necessidade, levou-se até aos confins destes mares, em frágeis embarcações, criando por caminhos inusitados e nunca dantes navegados, as artes de marear, de mapear, de olhar as estrelas, dignificando o seu conhecimento e os seus mesteres, os seus antepassados, e os seus intentos que, enquanto fundeados nos nossos tempos, serão um dia orgulho dos filhos e netos que nos seguirão nos nossos caminhos, e que, apenas por mau fado ou grave incúria tal não será verdade.

Sabeis, Senhor, que muitos pereceram na busca de tais terras e costas, nesses misteriosos Oceanos que nos levaram, e exigiram a sua paga em vidas por tão grandioso fado, por tão grandiosa façanha, que é tornar o pequeno em grande, que é tornar escuridão em luz, e pela mão da bravura, do conhecimento e das ciências, trazer luz às escuras idades que outrora os homens tornaram opacas, boçais e desalentadas.
Sabeis Senhor, que tais venturas foram possíveis pela mão de povo pequeno em número, grande em espírito e vontade, comandados por grandiosos e elevados homens cujos olhos se postavam nos horizontes e nos céus, almejando sempre mais além do que o momento onde estavam, assentando pés nos edifícios que seus pais, e os pais de seus pais, e todos os que os precederam, construíram, para que melhor mundo se pudesse criar, e que do vazio que todos esperavam perdurasse nos corações desse povo, brotassem mundos e conhecimentos.

~

E parando o seu discurso, pareceu embrenhar-se novamente nos seus pensamentos, alheando-se daquele momento, e mesmo do homem ricamente vestido, que, boquiaberto, olhava, tomado de grandioso enlevo, aquelas faces envelhecidas, a barba hirsuta, aquele olho agora abstraído no espaço e no tempo, que havia visto as Índias, as Áfricas, os Orientes, estranhos povos e costumes, oceanos revoltos, morte e vida, batalhas e lutas, presenciado e vivido ele próprio as aventuras de mareantes e comerciantes que eram hoje lendas que se contavam nas ruas, e que o seu discurso e o seu amor – agora entendia com clareza a palavra – traziam bem vívido, de sangue ainda a latejar e coração a bater.

Arrebatado pelo momento, lambeu os lábios, e decidiu-se a interromper o momento do primeiro homem

- E amanhã, mestre? – perguntou, a voz quase suplicante – O que vê nos amanhãs de tão nobre e grandioso povo? – e inclinou-se para o primeiro homem, apoiando as mãos nas pernas. Este, virando a face, olhou-o nos olhos e sorriu com enlevo. Levantou-se lentamente, como homem cansado e arqueado pelo peso da responsabilidade, e disse

~

O que seria de esperar de tamanho empenho às suas causas? Que continuem livres e empenhados debaixo da bandeira do conhecimento e do aperfeiçoamento do Homem, enquanto ser universal, não só para si e para os seus, mas para todos os homens, a maioria ainda debaixo do jugo da ignorância e da brutalidade.

O que seria de esperar de tamanha coragem? Que continuem corajosos no desbravar de novas terras, novos povos, novas culturas e quereres, aprendendo e ensinando o que houver a aprender e ensinar, oferecendo e recolhendo o conhecimento, onde o houver, procurando ser melhor e fazer melhor, enfrentando a adversidade e a tormenta com espírito altivo, sabendo cair e reerguer-se, mas melhor e mais sábio.

O que seria de esperar de tamanha grandeza? Que prossigam em tais caminhos, para si e para os outros, dialogando onde outrora davam batalha, honestos e fiéis às suas palavras e gestos, ao seu espírito e à humanidade, benevolentes, onde outrora impiedosos, generosos onde outrora egoístas.

O que seria de esperar de tal povo em tais momentos? A grandeza da vontade inamovível, da entrega unívoca ao momento e aos quereres. E que com tal exemplo, todos os povos e homens se revejam, e transformem a escuridão em luz, a ignorância em saber, e que tudo seja sob a radiância do conhecimento e da paz e desenvolvimento com e entre os povos.

~

E tendo dito tal olhando para o claustro, virou-se para o homem ricamente vestido que, estupefacto, o olhava com espanto. Sorriu-lhe vagamente e sentou-se

- Este é, portanto, o amor que me moveu a escrever esta epopeia – disse calmamente.

~

O rapaz sentia o sabor salgado das suas lágrimas nos lábios. Sentia-as escorrendo pelas faces, e pela pele das mãos com que havia tapado os olhos, durante o discurso do homem no claustro. Não lhe conseguia ver a face, mas tal ardor, tal amor incondicional, parecia-lhe algo tirado do enredo de uma das obras clássicas a que o haviam introduzido quando era criança. E a forma como este divagara acerca dos feitos do povo liderado pelos seus antepassados, a grandeza e coragem dos seus feitos, o caminho trilhado, e aquele futuro radioso pareciam-lhe objectivo bastante para os tempos que se avizinhavam.

E viu-se a ele mesmo, num monte, no meio do seu exército, montado no seu cavalo branco, de reluzente armadura, espada ensanguentada erguida, o sol incidindo ao longo da lâmina, paladino da verdade e da justiça, herdeiro à altura dos grandiosos feitos dos seus antepassados, símbolo vivo de coragem, honestidade e fidelidade.

E sentiu que teria de o fazer rapidamente, antes que se lhe esgotasse o tempo. Teria de o fazer enquanto o ardor da juventude que sentia ainda nos seus membros, na sua mente, estava no auge.

Aguardou que as lágrimas cessassem de cair, e, limpando os olhos e as faces, fez sinal ao seu pajem, sussurrando-lhe

- Anuncia-me – o pajem passou-lhe à frente e assomou à porta, perfilando-se. Tossicou brevemente, e os dois homens junto ao arco, ouvindo tal, perfilaram-se. O pajem disse, com solenidade

- Sua Majestade, Rei de Portugal e dos Algarves, Dom Sebastião I – e rodando nos calcanhares, colocou-se de lado.

Dom Sebastião surgiu no pórtico, altivo, desprendido, escamoteando o avermelhado nas faces que sinalizava as recentes lágrimas que havia vertido. Os dois homens junto ao arco baixaram-se, assentando um joelho no chão, as cabeças baixas, os olhos no chão. O Rei sorriu, divertido, dizendo

- Podeis levantar-vos – e caminhou com solenidade em direcção aos dois homens, dizendo

- Pelo que me disseram trazeis-me uma epopeia sobre os feitos dos Portugueses, correcto, Luís Vaz?

Comentários