SER PORTUGUÊS É… - Júlia Domingues
«Foi
por vontade de Deus Que eu vivo nesta ansiedade Que todos os ais são meus Que é
toda minha a saudade (...)». (Excerto do poema Estranha forma de Vida, de Amália
Rodrigues, 1959)
Afinal,
o que é ser Português? Ser Português é caber dentro das linhas de um poema,
queixar-se de que elas lhe apertam o coração, mas não permitir que mais ninguém
cante a saudade.
Quando
o primeiro Português saiu para conhecer o mundo, (ainda) não fazia ideia de que
o mundo ia ficar a conhecer o povo Português. Arrisco dizer que não há canto
nenhum neste planeta em que não tenha passado – e ficado – a alma Portuguesa.
Porque ser Português é isso mesmo. É ter a ousadia de sair do país, mas nunca
deixar que o país saia dentro de si.
Mas
comecemos pelo princípio.
Quem
é o povo Português? O povo Português é um povo pequeno, situado num país à
beira-mar, com um clima temperado que tem, em média, mais de 300 dias de sol
por ano. Isto, por si só, deveria ter sido suficiente para nos manter
sossegados, a aproveitar o ócio que um clima destes oferece. Só que não foi
isso que aconteceu. A nossa história confunde-se com a história do mundo e é
com o peito cheio de orgulho e com os braços erguidos ao alto que reclamamos já
termos sido o maior império global da história. E fomos. O povo Português tem
uma identidade única e inconfundível e, desde cedo, começou a espalhá-la pelo
mundo.
Foi
quando o povo Português foi para fora; quando deixou este pedaço de terra
retangular e pegou nas naus e nas caravelas Portuguesas para se lançar a um mar
desconhecido, que descobriu – além das muitas terras que conquistou – que Ser
Português não é uma opção, é uma condição. É algo que corre debaixo da pele e
que confere características únicas como, aliás, mais à frente, teremos
oportunidade de perceber. Enfrentámos o cabo das tormentas, mas não descansámos
enquanto não lhe chamámos cabo da boa esperança. Deixámos muitas vidas nos
mares, mas honrámos o seu sangue em cada bandeira da nação espetada em terras
desconhecidas. Saímos em nome da fé e voltámos por causa dela. Abrimos as
portas do mundo e erguemos os portões do estado e da nação. Insurgimo-nos
contra os infiéis, expandimo-nos pelos quatro cantos do mundo e deixámos
(tanto) de nós em cada pedaço deles. Dos outros. Dos que nos iam conhecendo e
invejando pela valentia, pela bravura e pelas conquistas. Dividimos o mundo ao
meio e enganámos os espanhóis.
Mas
os dias de glória não duraram para sempre. Fomos óptimos a construir um império,
porém, fomos melhores a perdê-lo. Creio que foi aqui, que foi por esta altura,
que se consagrou a palavra saudade. Palavra que não encontra morada em mais
lugar nenhum. Palavra que não tem tradução literal em mais nenhuma língua e que
tão bem representa o sentimento do povo Português. Para trás, ficaram as
terras, connosco veio o sentimento de pertença. Nunca mais o povo Português
haveria de ser considerado um povo pequeno, pese, embora, voltasse a resumir-se
ao espaço europeu. Havia conquistado, além das terras, o direito a ser grande
para sempre. E isso (já) ninguém lhe tira. Foi por esta altura que o povo
Português percebeu que o que o unia era mais forte do que o que o separava; que
descobriu que há palavras que não encontram tradução literal em mais nenhuma
língua porque dentro dela não cabem significados, cabem emoções e as emoções
não se traduzem, sentem-se.
Ora,
haverá factor mais determinante para a formação da identidade de um povo do que
possuir na sua língua uma palavra onde não existe tradução literal em mais lado
nenhum?
E
para que mais ninguém esquecesse – como se fosse possível esquecer tamanho
feito – escreveu-se a saudade. Formámos escritores, poetas, gente da nossa
gente que fez das gentes do seu país maior do que um povo. É assim que nascem
as nações. É assim que se sustentam os grandes povos. Os que se constroem de
dentro para fora, do sangue até à pele. E para que mais ninguém esquecesse,
escreveu-se a saudade:
«As
armas e os barões assinalados,
Que
da ocidental praia Lusitana,
Por
mares nunca de antes navegados,
Passaram
ainda além da Taprobana,
Em
perigos e guerras esforçados,
Mais
do que prometia a força humana,
E
entre gente remota edificaram
Novo
Reino, que tanto sublimaram; (...)». (Estrofe I,
do Canto I, da obra Os Lusíadas, Luís Vaz de Camões, 1ª publicação em 1572).
E
nunca mais ninguém esqueceu. Partilhámos escrita, prosa, poesia. Voltámos a
navegar pelo mundo do lado de fora das naus e caravelas. Navegámos em folhas,
linhas, palavras. E deixámos tanto de nós neles. Nos outros. Deixámos uma
língua para ser falada, reconhecida, amada, respeitada. Actualmente, a língua
Portuguesa é uma das línguas mais faladas do mundo. E se isto não é fazer parte
da génese da identidade de um povo, o que será?
Mas,
a seguir a isto, ser Português não foi, aliás, não é fácil. Ser Português
trouxe-nos a «culpa» de ser Português. De ter agarrado aos genes esta angústia
que se prende ao peito, este tilintar permanente nas nossas cabeças, de:
«podíamos ter sido os melhores do mundo»; «éramos para ter sido os maiores»; do
«esteve quase». O estigma do «podíamos ter sido o maior país do mundo, mas
somos portugueses». Esta culpa de aceitarmos, resignados, este malfadado fado
que Deus nos deu. Talvez por causa disto, por causa deste nosso fado, cresceu
em nós, nos Portugueses de Portugal, uma maledicência natural. Aprendemos a
dizer mal de nós, a queixarmo-nos, com ou sem razão, a vivermos permanentemente
descontentes com o que nos sobrou. Sobrou a miséria, a fome, a estagnação.
Sobrou um país pobre que se distanciava cada vez mais do outro mundo que ele
próprio havia ajudado a erguer. Aprendemos a dizer mal de nós porque estivemos
perto de ser tanto e sobrou-nos tão pouco. Ficámos com um país nas mãos sem
saber o que lhe fazer. Mas depois – há sempre um depois, não há? – somos feitos
de uma convicção inabalável de não querermos ser doutra forma. De não sabermos
ser diferentes e de não aceitarmos ser confundidos com mais ninguém. Somos o
que somos e assumimo-lo. «Nós somos Portugueses, porra! Portugueses de
Portugal».
O
que é isto de ser Português de Portugal?
Na
verdade, estou convicta de que não basta ter nascido em Portugal ou ter a
nacionalidade Portuguesa no Cartão de Cidadão para conferir ao indivíduo o
título honorífico de ser Português. Ser Português é ser de dentro para fora.
Não há cá «em Roma, sê Romano» (ditado popular). Ser Português é levar o país
nos genes mesmo quando o país está longe. É fazer casa em qualquer parte do
mundo. É levar o País na mala. É ter a certeza de que não há comida melhor do
que a nossa, nem vinho, nem café. Nem sardinhas assadas no carvão, comidas em
cima de uma fatia de broa de milho. É estar num país desenvolvido e mesmo assim
continuar a ir às lojas Portuguesas. É que só lá é que se consegue encontrar a
palavra saudade. É ter tido metade do mundo aos pés, mas não ter ficado aos pés
do mundo. Ser Português é trazer nos antepassados um garrafão de vinho, uma
bucha de pão e uma chouriça, mudares-lhe o rótulo e transformá-los em produtos Gourmet. Ser Português é isto. E aquilo.
É saber que não se deixa de ser Português, esteja onde (e com quem) estiver.
«Nós somos Portugueses, porra! Portugueses de Portugal».
Talvez
por sermos um dos países mais antigos do mundo fomos exímios em colecionar
hábitos e costumes. E se o que definem os hábitos e os costumes são as regras
sociais resultantes da prática reiterada de forma generalizada, o que resulta
de uma convicção de obrigatoriedade, não seria o povo Português a
subverter-lhes o significado.
Portanto,
ser Português de Portugal é ver na sua pequenez a grandeza de que se é feito.
Mesmo que mais ninguém a veja. É (saber) aproveitar-se dela e reverter isso a
seu favor. É pedir para dar um «jeitinho» porque «somos só Portugueses, daquele
país pequenino». É estar convicto de que tudo vai mal, mas que não há povo que
se chegue a nós. É achar que não temos sorte nenhuma, mas, ainda assim, tomara
os outros terem a nossa sorte. Ser Português é não deixar que Portugal saia de
nós, mesmo que o nosso fado seja um dia sair de Portugal.
Em
cada canto do mundo existe um Português. Ou dois ou três. Não creio que esta
afirmação, que tem tanto de empírica como de verdadeira, seja dita por sermos
um povo que viaja mais ou que emigre mais do que os outros povos. Creio, sim,
que um Português é facilmente reconhecido em qualquer canto do mundo por ser
Português. Não tanto pelas suas características físicas (que facilmente podiam
ser confundidas com qualquer outro individuo proveniente da península ibérica),
mas por todo um conjunto de caracteristicas emocionais e sociais que faz dele
um ser inconfundível. Em qualquer canto do mundo.
Quem
nasceu em Portugal, provavelmente, nasceu num dia de sol. Ser Português é dizer
que não aguenta tanto calor e dizer a mesma coisa sempre que o frio chega.
Porque ser Português é «ir andando». É nunca estar satisfeito com o que se tem,
é fazer parte de um país que ainda vai ser. E só ainda não o é porque a culpa é
dos políticos, que mais nos desgovernam do que governam. Mas ser Português
também é não ir votar no dia das eleições porque está um lindo dia de praia. E
não há praias como as nossas. É ser feito de uma certa letargia, de não querer
saber, de se resignar com «este fado que Deus nos deu». Mas se quisermos
acordar um Português, conhecer-lhe a garra, saber do que ele é feito, é pô-lo
em frente a um estádio de futebol. Quem quiser conhecer o verdadeiro Português,
aquele de que falei umas linhas acima, um Português de Portugal, então basta
vesti-lo com as cores do seu clube ou da Selecção Nacional. Aí voltamos a ser
um país maior, um povo extraordinário (pelo menos, por um período aproximado de
90 minutos), o mesmo que leva a mão ao peito e fica com a voz embargada quando
ouve A Portuguesa (título do Hino Nacional Português). Somos a sandes de
courato e a imperial fresca que bebemos nas roulotes
do costume. Somos iguais, nem uns mais ricos nem outros tão pobres, somos o
que vestimos, somos as cores de um país e o símbolo de uma nação.
Só
no dia seguinte voltamos a vestir o individualismo. Voltamos a acordar tarde
para enfrentar as mesmas filas de trânsito porque somos incapazes de sair de
casa cinco minutos mais cedo (antes enfrentar uma fila de carros do que dar
horas de borla ao patrão). Voltamos a ser «cada um por si», que isso do «um por
todos» só resulta com os outros. Voltamos a tentar ser mais espertos do que os
outros e a tentar passar à frente nas filas do supermercado. Somos os que
remedeiam porque deixamos tudo para a última da hora. E os que aceleram, em vez
de abrandar, quando os semáforos passam a amarelo. Não somos bons com regras.
Aprendemo-las para as poder contornar. Fugimos às leis e arranjamos esquemas
para não pagar impostos. Somos os que entopem as bombas de gasolina quando há
uma ameaça de ruptura de combustível, mesmo quando o carro vai ficar parado à
porta de casa. Não resistimos à palavra grátis porque achamos que estamos a
fazer o melhor negócio do mundo. Levamos três e pagamos dois, mesmo não
precisando de nenhum. Ser Português é criticar o outro, mas fazer exactamente a
mesma coisa. É comer caracóis no Verão, mas achar que o povo Chinês é que é
esquisito porque come insectos. Ser Português é ter uma das línguas mais ricas
do mundo, mas a primeira coisa a ensinar a alguém que vem de fora é o rol completo de asneiras. Ser Português
é estar a ler estas linhas e estar a esboçar um sorriso porque nos
identificamos com cada sílaba.
Ser
Português é isto. É reconhecer o que somos e como somos, saber que
provavelmente carregamos mais defeitos do que virtudes, mas não permitir sermos
menos do que isto. É ter a capacidade de transformar os maiores defeitos nas
melhores virtudes. E rirmo-nos disso. É saber que não somos os melhores, e que
vamos reclamar disso todos os dias, mas (já) não nos acharmos os piores (o que
aconteceu, durante muito tempo). Ser Português é aprender a gostar de nós da
forma como somos. Já não nos importamos de levar arroz de frango para a praia,
dos nossos pais usarem bigode e de se passearem com o palito ao canto da boca.
É querer continuar a ver a vizinha do rés-do-chão à janela o dia todo, apoiada
numa almofada para não magoar os cotovelos, é saber que o mecânico vai
continuar a ter calendários de senhoras pouco vestidas na parede e que mesmo
que tenhamos aprendido a gostar de sumos detox,
é saber que não há nada que se chegue a uma mini.
Ser
Português é nunca faltar vinho em cima da mesa. Nem amigos à volta dela. Somos
o país onde alguém desconhecido nos pede uma informação e nós ficamos a
conversar durante meia hora. Somos o país que (se) desenrasca. Que não deixa os
pastéis de bacalhau sem salsa porque há sempre um vizinho que nos safa.
Ser
Português é isto. É ser fado. É cantar a tristeza que aperta a alma, mas não
permitir que ninguém a cale.
Ser
Português é não fazer ideia de que continuamos a ser maiores do que nós mesmos.
Depois de termos inventado a Caravela Portuguesa, continuamos a conquistar e a
impactar o mundo. Somos os inventores do Multibanco, os criadores do sistema
das portagens electrónicas Via Verde,
explorámos o conceito dos cartões pré-pagos, somos os responsáveis pela criação
do elevador para cadeiras de rodas e criámos o sistema coloradd, que é um
sistema de identificação de cores para daltónicos.
Ser
Português é tudo isto e muito mais. Mas, essencialmente, ser Português é saber
que do lado de dentro do peito, nesse peito que chora a saudade, nunca o peito
vai deixar morrer, o que é ser um Português de verdade.
«Nós
somos Portugueses, porra! Portugueses de Portugal».
Júlia Domingues
Obra submetida a
concurso
"O Que É Ser Português?"
ENSAIO
Edição 2021
BIBLIOGRAFIA
“História
de Portugal”, João Medina, edição EDICLUBE.
“Nós
e a Europa, ou as Duas Razões”, Eduardo Lourenço, edição INCM
“Ser
Português é Difícil”, Miguel Esteves Cardoso, artigo de opinião in, https://ncultura.pt/ser-portugues-e-dificil-por-miguel-esteves-cardoso/
“10
hábitos estranhos dos Portugueses”, VortexMag, 3 de Maio de 2019 in, https://www.vortexmag.net/10-habitos-estranhos-dos-portugueses2/
“O
enigma de ser Português, Luís Robeiro, 23 Dezembro 2020, in, Observador, https://observador.pt/opiniao/o-enigma-de-ser-portugues/
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