SER PORTUGUÊS - João Brandão Ferreira
"Esta é a ditosa Pátria minha
amada,
À qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Tome, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela estão os íncolas primeiros."
Carnões, Lusíadas. 111,21.
Ninguém escolhe ser Português. É um acaso do Cosmos ou um acto da
Providência Divina. Simplesmente tem-se essa honra ...
Mas "sendo nós portugueses",
nas palavras de Pessoa, "convém saber o que é que somos".
Ser Português é ter "um berço estreito para nascer e um mundo inteiro para
morrer", como disse o Padre António Vieira.
É só saber (sentir) verdadeiramente o que é, depois de sair de Portugal...
Ser Português é ter saudades do futuro!
Mesmo sem lhe apetecer construir o
presente.
Ninguém pode entender isto sem ser
Português.
Ele próprio não o quer entender, pois
raramente percebe o presente como suficientemente motivador para se empenhar
...
Não sabe viver sem sonho e sem glória e
carece de entender que está a desempenhar um papel importante. Sem isso apenas
a conservação da existência o impele ...
Passa até, a ser muito mais Português,
lá fora, quando emigra. Nem gosta de dar parte de fraco.
O Português vive na lembrança de uma
grandeza que lhe percorre o subconsciente, mas faltando-lhe arrimo para, novamente, a
conquistar. É um caracter algo paradoxal
que acompanha os altos e baixos da História Pátria.
Prosaicamente ser português continua a
ser gostar de bacalhau, sardinhas assadas e couratos; matar o porco em Janeiro
e aproveitar tudo; ter como desporto favorito ir almoçar fora ao domingo, com a
família, resolvendo os problemas nacionais nos almoços dos restantes dias. É arranjar conversas e arrufos intermináveis,
por causa do futebol e valorizar mais a "esperteza saloia" do que o mérito; afinal há sempre um
"conhecimento" a quem deitar mão, uma recomendação, um empenho ...
Esta última característica cria um
ambiente negativo em que existe condescendência em copiar nos exames; demasiada
tolerância com o fracasso e a mediocridade e a falta de veemência e
determinação na luta contra situações de corrupção.
Ser Português é apreciar o luxo e alguma
ostentação mas não o conforto e o bem-estar ...
Muito individualista e com pouca
apetência para o trabalho em grupo, o português possuí, outrossim, um grande
sentido de solidariedade humana. O português nunca está bem nem mal, está
"como Deus quer ... ", "vai-se andando", ou "assim -
assim"!
O português gosta de se deslumbrar com o
que se passa no estrangeiro (o que revela alguma baixa estima, ao contrário do
que acontecia no século XVI) até lhe tocarem na dignidade; mas em simultâneo,
mantém a desorganização nos negócios e a grande maioria de quem tem empresas
comporta-se muito mais como "donos" das mesmas do que como empresários, com uma visão imediatista das
coisas e dos homens. Ser rico amanhã é quase
sempre preferível, do que a sê-Ia, um dia depois ...
O português necessita ser bem liderado (como todos os
demais povos), mas o "Comando e a Liderança" sempre foram parentes
pobres no pensar português.
O país dos portugueses, chamado Portugal, nasceu da
vontade de um Príncipe e da aspiração das gentes de "Entre Douro e
Minho", se libertarem de tutelas; as lutas constantes contra mouros,
leoneses e castelhanos fortaleceram-Ihes a têmpera e a unidade, até que estabilizaram
a fronteira, em 1297, a mais antiga e estável, da Europa, quiçá do mundo (resta
apenas resolver o caso de Olivença, pendente desde I807).
Após um impulso inicial para viverem de vida
própria, abalançaram-se a um projecto de afirmação temporal e espiritual à
escala do planeta, ligando quase todas as partes da terra. Já se olvidou, porém, da heroicidade da
luta pela Restauração, bem como da saga homérica da expulsão dos invasores
napoleónicos e vive ainda a amargura dos desaires e lutas intestinas do restante século XIX e primeiro quartel do século XX. De costas voltadas a
Espanha e apenas com um pé na Europa e o restante corpo e alma no
"Além-Mar", esquece-se facilmente que as disputas do "velho
continente" lhe são, por norma, nefastas e vai cometendo erros por deficiente
percepção, esquecimento de ensinamentos antigos, ou simplesmente por falta de capacidade
em se afirmar.
Fica-lhe o velho "milagre de Ourique"; a esperança do retorno
do Dom Sebastião, subindo o Tejo de espada alçada e a nostalgia vindoura de um
"Quinto Império".
Irrequieto, porém, compraz-se na crítica
mordaz àqueles que o governam (para lá dos Pirenéus existe um povo que não se
governa nem se deixa governar – segundo um General Romano), esquecendo-se que
"eles" são feitos da mesma fibra e igualha, e na troça e ironia cáustica,
perante a sociedade e a vida.
Vive uma existência que não quer discutir na sua essência filosófica ou
religiosa, quase nunca levando a vida demasiado a sério, mas emprestando-lhe sempre um cunho prático efuncional.
Não gosta, porém, de abstrações nem tem espírito místico.
De certo modo imprevidente, pouco perseverante e disciplinado, pensa que
as desgraças acontecem sobretudo aos outros e confia que as suas qualidades de
desembaraço (isto é, de"desenrascanço"
- esse termo intraduzível) resolverão a última hora qualquer dificuldade que surja.
Tem forte receio do ridículo e da opinião alheia, que abafam e
desvirtuam a sua naturalidade e, por isso, é pouco
exuberante, ruidoso e expressivo, mas tem forte espíritotrocista e é imbatível a criar chistes e anedotas; os
seus adágios são o auto - retrato da sua sabedoria ancestral.
O Português não gosta de fins trágicos, não sendo por acaso que nas
touradas os touros vêm embalados e não são mortos na arena e as igrejas não têm
imagens trágicas de Cristasdesfigurados; e Portugal foi o primeiro país a
abolir a Escravatura, na Europa e, ainda, a pena de morte, no mundo ...
o português
é aventureiro, expansivo, preza a sua
liberdade e é avesso a regras e autoridade
(fazer sinais de luzes na estrada, para avisar que a polícia está lá atrás, é um hábito arreigado ...). É ainda ernotívo, idealista e imaginativo.
A sua capacidade de adaptação a gentes, línguas, costumes, climas e
provações é imensa edificilmente
superada por qualquer outro povo. São estas características, juntamente com o fundo
psíquico já referido, o sentido ecuménico e uma forte plasticidade humana, quejustificam
e moldaram a específicídade da colonização portuguesa, ao longo dos séculos e
um pouco por todo o mundo. Os Portugueses misturaram-se e deram-se, reconheceram e educaram
os filhos que foram fazendo; nunca fizeram genocídios nem inventaram
"reservas" ou "campos de concentração"; tão pouco se
julgaram uma "raça superior", antes ofereceram a sua nacionalidade e
proteção. A Colonização Portuguesa - que não deve ser confundida com "Colonialismo"
- pode assim, definir-se em três palavras: assimilação por adaptação!
O fundo amoroso, lírico e bondoso empresta-lhe um carácter humano, sonhador e
sensível muito vincado; humilde, sem perder a personalidade, dá-se a brios que
o podem tornar violento; e sendo comunitário, no sentido de estar pronto a
ajudar, não deixa de ser invejoso, com realizações e posses alheias.
No Português o coração é a medida de todas es coisas.
Excelente combatente quando bem liderado, o Português é heróico quando surge a oportunidade, mas
também se deixa abater pelo desânimo quando vê faltar coragem e dlscernimento a
seu lado. É, no fundo, um povo de
guerreiros, Sem se dar muito bem conta disso.
Os primitivos habitantes caldearam-se,
depois da "Pax Romana", com as vagas de invasores seguintes e foram
conseguindo absorver todos os que por cá foram chegando, desde cruzados, escravos
negros, ou estrangeiros que comerciavam ou lutaram nas diferentes campanhas militares havidas. Mas nenhum grupo ou região tomou
preponderância sobre os outros, tendo
o Cristianismo Católico e o do Culto do Espírito Santo (século XIII e
seguintes) uniformizado conceitos morais, éticos e religiosos.
Resta hoje, contudo, um fundo anticlerical (sobretudo na parte masculina
da população) cuja causa se encontra em antigas lutas ideológicas, religiosas e
de Poder. Por isso também muitos afirmam ser católicos (cristãos) "à sua maneira" e a maioria da
população que vai à missa e outras cerimónias religiosas, são mulheres.
De tudo resultou uma matriz cultural única e diferenciada, temperada
pela orografia e clima a que a importância da cidade de Lisboa e Vale do Tejo,
onde sempre confluíram harmoniosamente gentes de todo o território, veio a
tornar numa unidade política naturalmente coesa e coerente.
o fundo
temperamental é a constante de um
povo, o seu máximo divisor comum. Sem embargo algumas características
atribuídas aos portugueses são apenas aspectos culturais de uma ou outra região
do país (as festas do Espírito Santo atingem um esplendor nos Açores, que não
tem paralelo noutras regiões, nem a "aflcíón' taurina em
Trás-os-Montes tem qualquer semelhança com o Alentejo, por ex.), mas tal nunca
pôs em causa a homogeneidade cultural do conjunto.
Podem considerar-se como expressão superior da cultura portuguesa “Os Lusíadas"; o "Mosteiro dos
Jerónimos"; o "Poliptico", de Nuno Gonçalves e os "Tentos",
de Manuel Coelho.
Mas o que moldou definitivamente a alma e o destino Nacional foi o Mar,
que fixou junto à costa a maioria da
população; evitou e resistiu ao centripetismo da Meseta e foi sempre a janela
de Liberdade e oportunidade da Nação dos Portugueses. Foi o Mar que permitiu
apoios geopolíticos fora da Península Ibérica. Foi o Mar que garantiu a
individualidade da identidade Portuguesa no mundo.
Foi o mar que permitiu e desencadeou a ambição, a temeridade, o
desenvolvimento tecnológico, tudo exponenciado pela Fé, que permitiu aos
Portugueses ultrapassarem-se a si próprios e a marcar a sua assinatura na
História da Humanidade, como poucos o conseguiram.
o projecto
português era um projecto de futuro e representou a primeira globalização efectuada
a nível mundial, e tinha muito mais de espiritual do que de material, que foi interrompido
por poderes vários que se vieram a revelar superiores aos nossos.
Daí ficou a saudade do futuro ...
Os custos
de tal empreendimento foram muito elevados em termos de vidas humanas; em separações;
em lágrimas, dores e esperanças que ficaram por concretizar. Durou cerca de 600
anos ...
Os mais de 800 monumentos ainda
existentes, deixados pelo génio português, nas quatro partes do mundo, as
marcas da língua e da cultura e os muitos
afectos que espalhámos (e perduram) por todo o lado, são o que resta da nossa
presença ou passagem. Há que os conservar Portugal é um povo de poetas e marinheiros (enfim, hoje cada vez menos ... ).
Ficou ainda a saudade (outro termo intraduzível), um sentimento de
ansiedade e melancolia (que combina factores diversos, por vezes opostos) que
só a alma Portuguesa sabe sentir, muito mais do que explicar.
Passou a ser uma espécie de destino, cantado sob a forma de fado: a alma
de um povo no trinar de uma guitarra!
A identidade revela-se na matriz cultural, que por sua vez é decomposta em formas originais e
consolidadas, de culto religioso; música; arquiteetura; dança; pintura;
literatura; teatro; folclore; alguma filosofia, etc., que a língua - esse
instrumento fundamental de comunicação e ligação identitária - põe em comum e a religiosidade
sedimentou e uniformizou numa ligação telúrica à terra e ao mar.
Sem embargo a Identidade é sobretudo uma vontade. A vontade de ser
português.
Em Português, pois, nos entendemos desde Portucale e, oficialmente se
escreve, após deliberação do Rei, Senhor D. Dinis.
o que nos tem desentendido são sempre ideias vindas de fora, as mais
perigosas das quais são as ideologias políticas, estranhas à Nação e por isso
corruptoras do seu Ser e Estar. Sobretudo há cerca de 200 anos que convivemos
mal com elas.
As constantes culturais são apenas possíveis, todavia, desde que as ideias-base
ou os sistemas de valores sejam respeitados pela maioria dos membros da
sociedade. E tal começa na família.
Os factores básicos da cultura e modo de ser Português estão hoje
novamente ameaçados por um conjunto de ideias diversas e poderosas,
consubstanciados em muitos "ismos". E nota-
se algum "cansaço" e dúvida, nos portugueses, em quererem continuar a
existir (do qual a actual demografia negativa é,
talvez, a prova mais dramática), mas não pode (deve) desistir de si
mesmo. A caminho dos nove séculos de existência os portugueses não podem pôr em
dúvida o seu sentido e devir histórico como Nação ...
Alguns aspectos contraditórios do seu carácter levam a classificar os
portugueses, na feliz e complexa síntese do Professor Jorge Dias como "um
povo paradoxal e difícil de governar, pois os seus defeitos podem ser as suas
virtudes, e as suas virtudes, defeitos, conforme a égide do momento".
Ser Português é, tem de ser,
para finalizar, e apesar de todas as evoluções havidas, continuar a querer ser
Português, ou seja, ser português e não outro; com lucidez, melhorando ou
minimizando facetas menos conseguidas da nossa idiossincrasia. Esse terá que
ser o desígnio permanente e maior da grande família portuguesa. E tudo o que
possa pôr tal em
causa deve ser combatido sob todas as formas.
Para o Bem e para o Mal, aferrados à independência, que os poucos fazem muítos;
crentes em Deus; amigos de todos; de espada numa mão e a outra no arado e com
Maria Imaculada, nossa excelsa Rainha e Mãe, no coração.
Somos assim
Portugueses!
João Brandão Ferreira
Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"
ENSAIO
Edição 2021
Comentários
Enviar um comentário