O QUE É SER PORTUGUÊS? (OU O QUE HÁ-DE SER O PORTUGUÊS) - António José Borges
Refletir sobre a incontornável (e importante para o
nosso futuro) questão “O que é ser português?” também envolve a questão: ser o
que é o português; e requer uma arte de construção tão engenhosa quanto a da
nossa arte de ser – e sem nunca fugir aos pensamentos de Fernando Pessoa,
Agostinho da Silva ou Eduardo Lourenço, mas sempre com o foco no bem, no bom e
no melhor do mundo. Entre estes e outros pensadores, quem nos mostra o que é
ser português e o que poderíamos ser? Logo, quem é o nosso Shakespeare, aquele
que mostra o que nós somos, ou o nosso Beethoven, aquele que nos mostra quem
poderíamos ser? A resposta nunca poderá ser absoluta neste sistema-mundo das
grandes narrativas.
Estou convicto que para corresponder à questão central
é preciso compreender o que o português há-de ser: aqui encontramos Pessoa,
Agostinho da Silva e o poeta do nosso pensamento, Eduardo Lourenço, entre
outros. Todos eles beberam, cada um consoante a sua época e a sua sede, em
Fernão Lopes, Camões, António Vieira, Eça, na Filosofia Portuguesa, em Pascoaes
ou mesmo em Saramago, numa determinada perspetiva, mas sobretudo no nosso Vate
e um ou outro atualizou-o ou redirecionou-o. No entanto, como refere Miguel
Real em A Morte de Portugal(1), sempre subsiste o providencialismo
como fundo permanente da personalidade portuguesa. Justamente, sobre Pascoaes,
Real escreve que aquele «substituiu o velho Deus providencialista dos reis
portugueses pelo novo conceito de saudade, síntese aglutinadora da alma
portuguesa»(2) quando sugere
várias substituições de impérios, terminando na lusofonia, ora, o «império real
pelo império cultural da língua comum, o império social e económico pela ideia
providencialista, quinto-imperialista e paracletiana de império,
diplomaticamente designada de “Lusofonia”»(3) , portanto, uma
espécie de conjunto de desvirtudes ou faculdades que nos tem conduzido no rumo
da história de Portugal no mundo.
Há certezas a ter: é importante ir ao Brasil para
saber o que é ser português; não é possível saber o que é ser português sem uma
profunda consciência cívica lusófona, aquela que vai além dos livros de
história, mas que se serve dela para se conhecer melhor reconhecendo o outro –
só conhecendo o universo lusófono admiraremos mais a arte de ser português; e
ainda: além da semiperiferia em que vivemos, há sempre no português essa
mistura e vontade em ser tudo e todos e também há a admiração que têm por nós,
como profissionais dedicados e competentes, seja no que for, no mundo inteiro.
Portanto, não somos só universais a administrar, mas igualmente a servir.
Assim, do Camões histórico-mitológico, passando pelo
Padre António Vieira universal e moralizador (também ético, na prática e na
fundamentação da moral), discorrendo em Eça os vícios e costumes de um ser
português, não o absoluto, contudo um ser, até aos homens dos nossos dias, os
que viram a nossa potência (Pessoa), pois sentimos realmente tudo de todas as
maneiras, o que poderíamos ser (Agostinho da Silva) e quem somos (Eduardo
Lourenço), em todos eles vemos a construção de quem somos e do que poderíamos
ser, não me canso de o repetir (Saramago defendia a repetição de ideias para
vincar uma posição e tentou mostrar-nos que devemos levantar a cabeça perante a
glória).
Na empresa oriental, Camões, com a moldagem lírica e
épica da gesta portuguesa, deu a conhecer novos e exóticos mundos ao mundo
ocidental, contribuindo deste modo para o alargamento do horizonte espiritual
europeu como conquistador de novos mundos. Parte integrante do espaço latino,
Portugal veio daquele modo enriquecer o seu património nacional. Ora, como em
boa verdade tanto o mar outrora foi a última fronteira económica, devemos
considerar no agora e no amanhã que a lusofonia é a última fronteira
linguística, social, cultural e até psicológica. No espaço português ainda não
nos libertámos da inquisição. Perdemos oportunidades, para o bem ou para o mal,
de nos tornarmos competitivos. Hoje, parafraseando António José Saraiva, o povo
português é como um pêssego peludo: aveludado, macio por fora, mas por dentro
com um caroço duro de roer. Esquecemos a nossa peculiar arte de ser, pois fomos
os primeiros a abolir a pena de morte na Europa; um dos primeiros a abolir a
escravatura; conhecemos o mundo, enfim, fomos o grande povo que somos. Hoje,
tornámo-nos na inveja, no materialismo e tentamos imitar um corpo de ser que
não somos. Portanto, recuemos à nossa infância ou à mais positiva e invulgar
capacidade de improvisação que caracteriza o português; a crença viva como uma
força, mas que «quando toma aspectos irracionais e supersticiosos, pode ser uma
fraqueza»(4).
Sendo que os lusitanos têm origem numa raça autóctone
e nos celtas, que eram rudes, sóbrios, resistentes e espantosamente aguerridos,
na mentalidade portuguesa há a alma contemplativa simultaneamente lírica,
saudosista e obstinada. E aquele sentimento de saudade está ligado a três
influências que descrevem o carácter português: a lírica sonhadora, de
influência céltica; o aspecto fáustico, de influência germânica; e o aspecto
fatalístico, de tipo oriental. Em complemento atual existe no ser português a
sua já propalada capacidade de adaptação e a forte sensibilidade, o que é
positivo, mas também pode gerar, como ficou dito acima, fraqueza, quando emerge
a inatividade, o espírito coerentemente inconstante, oscilante, desfasado no
tempo ou, em última análise, o laxismo, o que torna o português, como povo,
paradoxal embora nem sempre difícil de governar. Sempre em abono ou prejuízo,
os seus defeitos podem ser as suas virtudes e as suas virtudes os seus
defeitos, conforme a égide do momento. Assim, motiva pensar: a Europa está a
mudar a mentalidade dos Portugueses? É inevitável que as características
pragmáticas, concretamente expressas na pontualidade e na consequência dos
actos dos germânicos, ou na maturidade do lazer dos povos nórdicos, nos
influenciem, tomando só estes exemplos positivos, todavia, subvertendo as
palavras de George Steiner usadas na obra A ideia de Europa(5), uma Europa
que não é refletida e, acima de tudo, que não diz quem quer ser não é
efetivamente digna de ser vivida e compreendida(6).
Grandes momentos nascem de grandes oportunidades. O
português de antanho soube agarrar as oportunidades com que se deparou e que
buscou e, assim, fixou grandes momentos na história (pelo que hoje o Astrolábio
circula simbolicamente entre os países que presidem à União Europeia). Hoje
continuamos a fazê-lo, mas sem um projeto comum – se por um lado os portugueses
estão menos preconceituosos, por outro estão mais individualistas: aqui reside
o nosso problema. Temos muito bons profissionais, mas estes ainda não têm o
culto de trabalhar em rede ou de criar nova riqueza e para o bem comum – antes
trabalham para si, o homem hedonista (ou até o homem light, aquele que não tem
interesse por nada que o faça pensar), quando, na verdade, o português, na sua
essência histórica, é um coração que pensa o mundo e um pensador que sente o
mundo. Daqui a admiração que sentem pelo português até em Timor-Leste, onde a
nossa cultura está enraizada e é sentida e levada como referência na postura
dos timorenses, sobretudo, do tempo português; ou quando notamos a subtil
presença da nossa língua na Indonésia (em certas palavras como “sapato,”
“igreja” ou “janela”) ou ainda em monumentos da cultura asiática reconstruídos
com a nossa ajuda – sempre pude, presencialmente, constatar leve mas
consistente influência do ser português quando passeio nas ruas de Macau, nas
suas travessas e entro nas suas pharmacia[s] ou na livraria portuguesa.
Indubitavelmente, há um grande legado lusitano no
Oriente. Quando se pensa numa pessoa lusofalante, geralmente é uma brasileira
ou uma portuguesa que vem à mente. Talvez seja uma angolana ou cabo-verdiana.
Mas raramente se pensa numa pessoa asiática. Na verdade, a Revolução dos Cravos
em 1974, que concluiu o regime salazarista e causou a independência dos países
lusófonos, inicialmente nem resultou na formação de nenhum país lusófono na
Ásia. O antigo Estado da Índia já fora cedido para a Índia depois de uma
invasão militar. Macau foi declarada um “território chinês sob administração
portuguesa” e seria oficialmente devolvida à China em 1999. E Timor-Leste, a
única província oriental que declarou a independência, foi quase imediatamente
invadido pela Indonésia e não reganharia a independência até 2002. Mesmo que
Portugal não criasse países orientais tão grandes e famosos como os outros
impérios europeus, foi o primeiro país europeu que chegou à Ásia no século XV e
o último que saiu dela em 1999.
Ser português é ter noção de que quanto mais longe
olhamos o passado mais distante ficará o futuro, pelo que só respeitando o
caminho feito e preservando a memória histórica e as raízes culturais e com ele
pensar o a fazer é que contribuiremos para a manifestação da identidade
portuguesa, refletindo a tradição cultural dos nossos antepassados que tanto
construíram em pensamento e ação, procurando a harmonia entre os povos
lusófonos e a inclusão dos mesmos numa cidadania nacional e lusófona. Uma breve
reflexão na linha dos republicanismos de Jürgen Habermas e de Philip Pettit e
da motivação cidadã, a que corresponde o pensamento de André Berten, importa
reflectir se a liberdade é a não-interferência ou a não-dominação, poisque
anarquia não é liberdade. Pelo que, o termo adequado para se aproximar do
conceito moderno de liberdade rondará a definição de concidadania, que nos
remete por sua vez para o segmento significativo Com os outros. Na verdade, a
inveja, sentimento que também habita na consciência de partes consideráveis do
tecido social de Portugal, impede a igualdade. Ligando ideias e factos, quando
alguém quer dar de si uma imagem positiva mostra, não poucas vezes, estar
imbuído de dois espíritos, ao menos, que se concretizam na vaidade e na sede de
reconhecimento. Creio que um dia definitivamente se concretizará na razão que
serve o sentimento e a sensibilidade, que é um grau superior de inteligência e
antecipa as verdades científicas, do ser português a mais alta filosofia
idealista de Ghandi ao pensar que “Não pode haver política sem princípios, nem
economia sem moral”. Neste sentido, importa frisar que a intra-história existe
no plano mais fundo da consciência nacional. Miguel Torga compreendeu-a e
sentiu-a obsessivamente, à maneira de Miguel de Unamuno, referindo, nos últimos
anos da sua longa vida, o descuido com que as elites, entregues ao facilitismo
dos fundos europeus e com impressionante falta de responsabilidade, agiram em
nome da sua pátria. Este também é um ser português, conquanto apenas um ser
português, diria Agostinho da Silva.
Razão teve e tem Ruy Belo quando escreveu que “o
Portugal futuro é um país/ aonde o puro pássaro é possível” (7), o
que entronca em Agostinho da Silva, pois ser português é pensar a lusofonia
através do momento contínuo de renascimento, travando as lutas/as causas do
presente com as armas do presente, mesmo que, como já ficou dito por outras
palavras, seja importante olhar de perto o passado para tornar o futuro mais
próximo.
O português sabe perspetivar e já soube rumar (não só
no mundo da água… o elemento dominante da época moderna da ekstaseis náuticas),
portanto só lhe resta aplicar o seu pensamento universalista e humanista,
pensando a lusofonia e a sua história, como é da sua natureza, pois nunca fomos
mestres do isolamento e da solidão e soubemos não dizer adeus ao Oriente,
entrando no espaço homogéneo.
Ser português é ser inovador, a história acompanha-nos
na desinibição primária, é ser imaginativo na mesma história que percorre o
nosso ser através da poesia, sobretudo, e é ser criativo, na qualidade
literária e audiovisual que nos acompanha, nós que cremos e sabemos, só
faltando dar voz, palco e apoio a tantos artistas sem visibilidade – numa era
do crepúsculo dos atores da criação e de luta dos e pelos cultores da ética da
responsabilidade em relação à natureza. A este propósito, ainda resta a
vergonha nos portugueses, mais do que noutras paragens, com os destinos da
humanidade neste planeta, seja porque poluem pouco ou porque nunca obstruem os
caminhos da sobrevivência, como outros descaradamente o fazem.
Em síntese, o que é, então, ser português? Para mim,
humano porque imperfeito, ainda assim uma celebração da humanidade, o destino
ditado pela vontade: é ser um resistente que quer vencer. Contudo, também é um
ser que sabe, no seu íntimo, rumar Portugal, que considera a Europa, mas que
não pensa seriamente e devidamente a Lusofonia. Pois bem, se quisermos
compreender o nosso tempo e adotar uma atitude mental lúcida, favorável à
solução dos problemas que atualmente se põem à sociedade portuguesa, parece-nos
não ser destituído de elevado rigor aceitarmos também como problema central do
nosso tempo a falta de ética e de moral. Assim como sem ética não há estética,
sem moral não há respeito. Isto condiciona a nossa vida económica, política e
até mental. Temos de ter consciência desta nossa condição de sermos e devemos
rapidamente recuperar uma consciência crítica da nossa individualidade
nacional. Temos de nos “desindividualizar”, no dizer de Eduardo Lourenço. E devemos
tomar com seriedade estas palavras do poeta do nosso pensamento, não devemos
tomá-las perniciosamente ou tendenciosamente, como tem sido prática dos diabos
com gravata de seda que se vão pavoneando nos salões das casas do governo e das
finanças. Por fim, deve recusar o português, e cada um de nós, dar seguimento
ao final d´Os Lusíadas, sendo fraterno e evitando a “banalidade do mal” de que
fala Hannah Arendt noutras lides, antes cumprindo o provérbio africano: “Entre
a inveja e a imitação prefiro a imitação”. Eu diria: entre a imitação e a
originalidade eu prefiro a fraternidade original, a genuinidade, a saudade de
um tempo em permanente recriação e criação, na verdade aquilo que revolve a
cada instante de desaire ou de glória a consciência de ser português.
Enfim, o ser português carateriza a jornada do herói:
começa por viver no mundo comum; depois é chamado à aventura (de certo modo
como Siddharta ao partir); num primeiro momento recusa a chamada; mas depois
encontra em si, em alguém ou algo um mentor ou ajuda sobrenatural; então
atravessa o primeiro limiar; alcança, se pensarmos num épico moderno (não o
grande épico americano Moby Dick de Hermann Melvile) ou metafórico, o ventre da
baleia, enfrenta bestas aladas, inimigos e alcança amigos; aproxima-se da
caverna oculta, fisicamente ou não, pois em Agostinho da Silva é o próprio ser
e a superação de si; encontra-se na provação suprema, como um astro errante em
busca do sentido; finalmente vê a recompensa desejada, na medida em que o
português sempre deseja; encontra o caminho de volta; dá-se a ressurreição;
retorna então com o elixir, o temporário remédio infalível, o que tudo atenua
menos a saudade ou, no mais moderno ser português, a ânsia do futuro português
que há-de ser neste mundo sincrónico que a todo o momento faz o elogio da
assimetria, com pausas aparentes em tempos como o da recente pandemia que
atravessamos. Contudo, neste palácio de cristal em que vivemos, metáfora da
situação em que nos encontramos, cujos limites são praticamente insuperáveis a
partir do exterior mas que exige de nós a construção do espaço interior, há
algo que o português vai mostrando que não perde quando é chamado à lida: a
consciência. Ser português é ser consciente do seu ser universal, humanista e
fraternal. Com efeito, um ser que é uma mistura de seres, uma, renovo, como
Fausto, a vida desta ideia que me assaltou desde o início, ser português é uma
celebração da humanidade.
Em suma, ser português é não fechar as portas ao ser e
ao pensamento universal. Foi essa a senda aqui percorrida.
António José Borges
Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"
ENSAIO
Edição 2021
NOTAS:
[1]
REAL, Miguel, A Morte de Portugal, Porto, Campo das Letras, 2007.
[2] REAL,
Miguel, idem, p. 35.
[3] Idem,
ibidem.
[4] DIAS, Jorge, Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa,
Lisboa, INCM, 2004, p. 51.
[5] STEINER, George, A Ideia de Europa, Lisboa, Gradiva, 2006.
[6] Com efeito, na obra supracitada Steiner, com um sentimento
profundo e uma lucidez implícita, percorre a origem, o presente e o futuro
incerto da Europa Ocidental. Aliás, propõe o futuro, havendo quem o aceite e o
construa.
[7] In BELO, Ruy, Homem de palavra[s], apud Todos os Poemas, Lisboa,
Assírio & Alvim, 2009, p. 266.
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