O que é ser português? - Diogo Pimentel

Introdução

 

Definir um português. Definir-nos. Definir-te. Definir-me. Não é tarefa fácil esta de definir tal raça. Definir está ligado à palavra decidir – decidir como definir, é este o desafio a que me proponho.

(Talvez, enquanto povo, não sejamos os melhores nisso de decidir. Basta ver exemplos como o do novo aeroporto que esteve para ser construído em vários sítios, e vários anos que continua a não o ser em lado nenhum. Utilizemos a expressão que normalmente se adequa a uma pessoa distraída, ou nesta situação, pouco responsável: “cabeça no ar”. Ironicamente, neste caso, a consequência mais próxima é a de ficarmos “com os pés bem assentes na terra”).

Ando para aqui com estas divagações e talvez não tenha de definir nada… descrever! Descrever parece suficientemente legítimo na resposta a este desafio sobre o que é ser português. No final de contas os portugueses são pessoas, e não é bonito – nem politicamente correto, como agora se diz muito – generalizar. Somos todos, e cada um, únicos e irrepetíveis. E essa premissa não pode jamais ser “deslembrada”, não alguém ofender-se! E para nos chatearmos é que aqui não estamos...

Ora bem, aqui está! Na cabeça de um português esta é uma saída airosa de uma situação onde não se sentia completamente confortável. E nisto da nacionalidade há que estar confortável, saber de onde se vem, mesmo que não se saiba muito bem para onde se vai. Porque o português sabe muito bem o que é.

“E o que é o português?” pergunta-se-lhe.

A resposta é balbuciada sem grande forma, que agora assuntos mais prementes…

Descrevamos então. Ou se nos der para outra coisa, que se nos dê!

 

Ser sobre si

O português gosta de o ser. Mesmo que diga que não, que amaldiçoe (ou que se sinta amaldiçoado pel’)o seu país, que grite que “lá fora é que é bom!”, que os “outros” é que são um país civilizado, o português gosta de o ser. Pode ter alguma dificuldade em o admitir, principalmente quando tudo parece correr mal. Mas, no seu âmago, gosta de o ser. E não queria ser outra coisa.

É o pequeno orgulho – fora os outros grandes – de poder dizer a um estrangeiro que se é português, tendo a certeza de que a pessoa em questão se terá cruzado com um dos nossos (não há canto do mundo que não tenhamos encantado!) e que provavelmente terá uma história para a vida. E se não tem, foi porque esteve distraído ou fechado a essa experiência.

(E se o estrangeiro não conhece Portugal, o problema é dele, que toda a gente que cá passa, diz que quer voltar. E nem é por simpatia).

É estar com um inglês e dizer-lhe “de nada” por para lá termos levado o chá e contar- lhe o óbvio (mesmo que não seja verdade) de que tea não é mais do que o acrónimo de transport of aromatic herbs in portuguese”.

É poder encontrar um espanhol em Portugal, e estando num ambiente mais descontraído, dizer-lhe que a Sé da Guarda tem um rabo de pedra virado para Espanha e que “de Espanha nem bom vento, nem bom casamento” (e ainda acrescentar ter um primo casado com uma espanhola).

E nem falo (muitas vezes) do Cristóvão Colombo ser alentejano!

É um dia perceber que Portugal está mesmo longe do resto da Europa, não obstante não deixar de lhe pertencer. Perceber que a distância por estrada de Lisboa aos Pirenéus (limite da Península Ibérica) é maior do que a distância dos Pirenéus a Basileia (fronteira entre a Suíça e a Alemanha).

É não ter imensa noção da riqueza da nossa história, mas ter ainda menos noção de arquitetura (a construir a nossa vivenda).

É o ter a certeza que se dança melhor que os outros europeus, mas mesmo assim preferir estar à mesa ou ao balcão. O português gosta do balcão, não porque esteja com pressa, mas porque sabe que quem serve é boa pessoa, e que ali toda a gente passa e se encontra.

 

Ser sobre nós

O mal de Portugal são os seus governantes (como se isso não tivesse nada que ver com o voto dos portugueses!). O português tem o seu quê de “Chico-Espertismo”, e está genuinamente à espera do jeitinho. É vê-los (ver-nos) a querer furar a fila como quem está distraído; é ouvir o clássico “Mas é só…(preencher com o pretendido que não é suposto)”; é o ver a velhinha a chegar 2 minutos atrasada à missa mais popular, certa de que alguém se vai levantar para lhe dar lugar; é o tentar falar com o primo do amigo para ver se ele consegue. E muitas vezes tudo isto dá resultado, porque somos um país de amigos, de amigos de amigos, e gostamos de ser prestáveis. O povo bem diz que “quem não chora não mama”, já a burguesia prefere a expressão “a sorte protege os audazes”.

É também o gosto pelo pequeno poder. O ficar de peito cheio quando alguém o (me) trata por “chefe”, mesmo que o trabalho seja aceitar (e carimbar! esse precioso gesto) requerimentos administrativos, às vezes de uma forma mais discricionária do que o saudável para um Estado de Direito.

O português indigna-se, mas por nada que valha a pena. É o clube de futebol e é o a Rosa Maria, depois de ter rompido namoro com o Manuel há um ano e meio, ter-se deixado embeiçar pelo Joaquim que era um choninhas (será que deixou de ser e o português não reparou?). É o meu partido político ser melhor que o teu, porque falei mais alto e isso me legitimidade para garantir a idoneidade do presidente da câmara com quem eu nem nunca conversei, mas vi a beber café e pareceu muito simpático. Mas valha-nos o copinho de 3, que adensa o bem-estar das gentes e isso é que não pode falhar.

Quanto ao estado das coisas, quanto à “burocraciazinha” que chateia e obstaculiza a autonomia privada, quanto à deterioração dos indicadores macroeconómicos, de desenvolvimento humano e democrático… demasiadas vezes já se cai no marasmo do “faz parte”.

(já nem referindo o evoluir dos outros países com quem nos comparávamos).

É os às vezes cairmos na tentação de achar que as coisas dos outros são melhores com um encolher de ombros… exceto a nossa gastronomia e o nosso vinho. Tenham lá paciência, mas não há sítio do mundo onde se coma e beba com tanta qualidade.

Até que chega o momento em que muitos desesperam e decidem ir para fora em busca de uma vida melhor. Quando a certeza de que Portugal é o melhor país para viver esmorece face ao choque de ser um dos piores para trabalhar. E emigramos.

 

Ser fora

Há os que o assumem logo e há os que não, que isto hoje em dia com os aviões dá sempre para ir passar um fim-de-semana a casa em caso de necessidade e “lá fora” para ganhar para isso e para as despesas, coisa que não é bem certo.

Já por mais que uma vez me deparei com o português qualificado da multinacional que está há 3 anos naquele país e antes tinha estado 3 noutro e mais 3 noutro… e depois cai na conta de que há quase uma década que não trabalha (nem vive) em Portugal, e por isso, baixinho, se assume como emigrante. Mas sempre na certeza de que isto é temporário e vai voltar. Mas será que vai? Para ganhar menos, ter férias em sítios menos exóticos e ter de fazer contas para ir jantar fora? Para ter pior qualidade de vida? Ao menos quando vai a Portugal vai à grande e pode mostrar que a vida lhe corre bem.

 Nas suas malas, além de uma hercúlea capacidade de superação e facilidade de se adaptar às circunstâncias, o português conta com as orações da avó, e não descarta a Santinha, a Senhora de Fátima, o Santo Antoninho ou o Galo de Barcelos – que isto no estrangeiro não é a mesma coisa, por isso que ir prevenido (e não leva uns tupperwares para o caminho, porque a meio se pode estragar!). As lágrimas também vão, mas há a convicção de ser por um bem maior.

O português emigrante é solidário. A minha experiência di-lo. Quando chega um novo, não se lhe fecha a porta e arranja-se um bocadinho para estar e conhecer… (claro que se o novo se revelar um parvo não há milagres, e nem toda a gente tem de se dar!). Tanto o português que já está há uma vida fora, como o português que chegou o ano passado costumam ter esta abertura. As portas são abertas e não cerimónias, que estamos todos fora da pátria a lutar pela nossa sorte. Ninguém saiu porque estava muito bem, satisfeito, em casa.

É falar de casa com um amor que não se fala em casa. É gostar de ficar à mesa a contar as mesmas histórias (e as mesmas mentiras) que provocam gargalhadas desbragadas. É saber receber com o melhor soufflé do mundo, mas preferir receber com a maior tachada de feijoada e uns tremoços, que se nos faltarem pontos de interesse comum, esse não falha. É ter sempre sopa, que nesses países onde para aí andamos, se houver essa tradição, é sempre uns caldos desenxabidos com coisinhas a boiar. (Todo o português sabe que coisa que não pode faltar em casa é uma varinha mágica, sendo este um dos primeiros investimentos que faz).

É também, de vez em quando, exasperar e dizer algum mal de Portugal com os nossos. Nunca com os de fora, que aí pisam-nos os calos e os “brandos costumes” são uma falácia. Ai deles!

O português é um homem de família (às vezes acontece ser de várias), mas preocupa- se em prover o necessário, que o resto não tem culpa dos seus devaneios. Além disso, aprendeu com a avó que tem de ser um homem sério e não lhe quer dar um desgosto, mesmo estando ela no Céu. No fundo, mesmo que por vezes não pareça, o português tem um coração de manteiga.

 

Ser dentro

Ser bom português é morrer na casa de fados, é ter um casus belli com o vizinho do lado(1). As embirrações com os vizinhos são um clássico… intermináveis assembleias de condóminos, minadas por construções deficientes, onde se ouve tudo de toda a gente, que vão moendo as paciências mais santas… os problemas típicos de extremas, quando o vizinho do lado um dia decide mudar a dita para nos roubar um metro, vá-se lá entender porquê… O português em Portugal, sabe, por vezes, só pensar com o seu umbigo!

Já o fado, é aquilo que é. Se calhar menos transversal e universal quanto se quer fazer parecer. Mas é nosso e isso ninguém nos tira. Nem todo o português tem paciência para as noites de fado, mas é impossível que alguma vez não as sinta como suas… a poesia não deixa ninguém indiferente. Atrever-me-ia a adaptar uma estrofe que sintetiza uma resposta airosa ao nosso exercício:

O português tem não sei quê   

Que prende a vida da gente Um nada que se não vê Um tudo que a gente sente(2)

Há coisas que o português leva a sério, mesmo que não lhes ache imensa graça para o dia-a-dia. Mas é tradição e tem de ser. E o que tem de ser tem muita força. Nesta categoria cabem imensas coisas, como as bolachinhas da avó chica, o bolinho de Todos os Santos, ou o folar da Páscoa… Mas há algo transversal (que não há a quem passe despercebido) tal o alvoroço desse dia: a procissão.

A procissão é dia grande, onde grandes lá na terra se acotovelam por levar o pálio e/ou o andor. A procissão é cantada no momento e cantada no cancioneiro popular. E que bonito dia! As colchas nas janelas, o povo aperaltado, a imagem a arejar… está tudo na rua. É festa popular! Há festa e há baile!

Estes dois, a procissão e o baile, costumam ser dois temas do cancioneiro português que são sucessos garantidos… quem nunca ouviu cantar ao Senhor dos Passos? Ao Senhor Santo Cristo? À Senhora do Almortão? À Senhora da Boa Viagem? À Senhora da Alegria? Ou à Senhora da Lapa? E a tantas outras Senhoras, Santos e Santas de Deus, que contribuem para a Fé popular… há lá coisa mais cheia de significado que as seculares procissões (3)?!

E a música de baile, que nem sempre é bem recebida para o dia-a-dia… mas é chegar a junho e ver Lisboa a chorar por ela e a reclamar das estrangeiradas que põem a tocar. Em junho, Lisboa é ficar no Largo de Santo Antoninho na Bica, a querer ouvir as marchas populares e o “Lisboa não sejas francesa(4)”, e a terminar a noite com o Hino Nacional nas escadas que ficam ainda mais íngremes com o aproximar do dia.

E na província, ficar a acompanhar o teclista, sobrinho de alguém da comissão de festas, que consegue manter um reportório fortíssimo, até o sol raiar, com grandes clássicos da música popular portuguesa alimentada a frango assado e a imperiais…

O português é um forte. Fartou-se de desafiar o mar para ir buscar o seu sustento, e de se meter à frente de toiros para ir buscar a sua arte e reconhecimento… o português não admite que lhe digam que não é corajoso. E efetivamente é-o. Com mais ou menos

cabeça, é-o. E sempre com coração. O português é um forte, mas deixa-se comover com o seu Portugal.

 

Ser criativo

O português tem tanta imaginação que se reinventa (que remédio) e reinterpreta como pode os seus lugares comuns. É ver a cortiça que só servia praticamente para enrolhar, agora ser roupa, material de isolamento ou biomassa utilizada para produzir energia. É ver a emocionante diáspora a não deixar cair aquilo que conheciam, muitas vezes a partir dos relatos dos seus pais… os cortejos etnográficos, os Santuários de Fátima, e os petiscos que já não têm nada a ver com a origem – exceto no nome. É de um exagero que roça a menos-verdade, mas nem por isso deixa de ser verdadeiro.

Portugal é onde o coração é maior, Portugal é onde o coração é mais cheio,  onde se vive principalmente por amor e onde se pode morrer sem receio.

 

Onde a pátria é Portugal

nem sempre é onde é o seu chão, pode até ser no mais difícil local, mas é onde ser português

se cumpre como vocação.

 

Apontamentos finais

Lembrando o que nos fez chegar a este ponto, conclui-se que não há definições ou descrições acertadas o suficiente para definir o português, ente com tantas venturas (e protagonista de tantas aventuras). O português é franco, é bom, é generoso, e tão rápido se entusiasma como desanima no mesmo assunto. Mas é vivo, é diletante, é amador! Desconfia de si, mas sai de si para o próximo. Sabe ser prático, não é esquisito e é completo a viver – tanto para o bem como para o mal. O português é o próprio Portugal.

 

Aguenta quase tudo, mas pede somente uma coisa:

Das mãos de Deus tudo aceito Mas que eu morra em Portugal(5)

 

Diogo Pimentel

Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"

ENSAIO

Edição 2021

 

 

 

 

NOTAS:

[1] Referência à música “Armada de Pau”, de Os Pontos Negros, 2008.

[2] Adaptação da letra do Fado “Destino Marcado”, popularizado por Fernando Farinha.

[3] Referência ao fado “Lisboa Antiga”, popularizado por Hermínia Silva.

[4] Fado de José Galhardo e Raúl Ferrão, popularizado por Amália Rodrigues.

[5] Fado de José Galhardo e Raúl Ferrão, popularizado por Amália Rodrigues.

 

 

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