“O que é Ser português?” - Maria Fernanda Antunes
O
Concurso da SHIP trouxe-me à memória uma das minhas melhores viagens, realizada
pós aposentação: um passeio ao Principado de Andorra. Parece-me ter sido ali
que recebi uma das respostas que poderá ser dada à pergunta do Concurso – “O que é Ser português?”
No
Principado de Andorra, qualquer turista ficará sensível às belezas da Natureza,
tal o encanto que o rodeia. No meu caso, senti que estava envolta numa paisagem
deslumbrante. Apeteceu-me abrir os braços e tocar as nuvens. Não tinha dúvidas de
que me encontrava numa altitude considerável, pois o coração batia forte. Estava
numa cidade, Andorra-la-Vella, toda ela um Centro Comercial, dada a profusão de
estabelecimentos comerciais nas ruas da cidade. Encontrava-me, de facto, num
país de características políticas e sociais interessantes que me tinham sido
dadas a conhecer pelos livros de História e também pelas conversas entre amigos
que, como eu, gostam de conhecer o mundo, de viajar.
No Hotel
onde me instalei, a rececionista, Filomena, era portuguesa. E a conversa sobre
Portugal veio de seguida: como estava o tempo em Portugal, o clima, as gentes
de Vila Praia de Âncora, a sua terra, a Família, as férias no Minho…
Uma
conversa longa de uma portuguesa saudosa de Portugal, mas pareceu-me ser feliz
em Andorra. Tinha ali muita família e amigos e, todos eles, segundo afirmou, socialmente
bem integrados.
Aproveitando
a sua simpatia e disponibilidade, fui fazendo algumas perguntas sobre a vida
dos portugueses em Andorra: as suas ocupações, a sua integração social, a sua
relação com o Consulado de Portugal, muito elogiada, o interesse dos filhos
pela aprendizagem da língua portuguesa, as suas convivências nos tempos livres
… e é neste particular, tempos livres, que aparece o maior entusiasmo, dado que
a rececionista minhota fazia parte do Grupo de Folclore da Casa de Portugal.
No dia
seguinte, fiz-me convidada para a acompanhar ao ensaio do Grupo. E lá fui, longe
de imaginar o que ali me esperava.
Gostei do
edifício de dois andares. Encontra-se numa parte sobranceira da cidade, com um
letreiro frontal - Casa de Portugal -, em letras bem visíveis, como quem dirige
um convite à população andorrana, pleno de hospitalidade portuguesa:
“Somos
portugueses e estamos aqui na nossa Casa. Dêem-nos o prazer da vossa visita!”
Logo à
entrada, uma sala ampla, com um palco ao fundo e, junto à porta, um pequeno
bar, acolhia portugueses de todas as idades. Observando bem, pensei que,
provavelmente, teriam chegado do trabalho, teriam passado por casa e levado os
filhos e que, finalmente, teriam chegado a uma escola de música e dança
portuguesas.
Continuando
observadora e sentada numa das mesas destinadas ao bar, sentia-me num lugar
estratégico da sala que ia ficando cheia. Daquele ponto de vigia, dominava-a em
plenitude e via quem entrava, quem saía, e, sobretudo, quem tocava, cantava e
dançava.
Naquele
momento, era feito o ensaio a um grupo juvenil que bailava ao som agradável de
um vira do Minho. E eu, encantada, desfrutava o momento do ensaio, como se de
uma festa surpresa se tratasse. A pequenada, tinha sangue minhoto nas veias.
Sem dúvida. Um encanto para a vista e para o espírito: sociabilidade, canto,
arte e, sobretudo, muita cultura portuguesa em movimento, ali bem patente e, garbosamente,
oferecida à juventude portuguesa e lusodescendente.
De vez
em quando, a música era silenciada e parava o baile, pois as voltas do vira
também cansam.
Mães e
Pais, de copo na mão, - talvez vinho
verde! - iam conversando. Tudo se passava normalmente, sem ruídos exagerados. Com
bastante urbanidade.
De
repente, o lugar dos filhos é cedido aos Pais e, diante dos meus olhos, começa
um bailarico minhoto à séria, mesmo muito à séria, onde estavam presentes as tamanquinhas
do vira. Faltavam os lindos trajes minhotos, mas mal se dava por isso, tal o
encanto da roda. Após cada exibição, o grupo era merecidamente ovacionado pelos
assistentes. Também bati palmas, com entusiasmo.
O ensaiador,
diretor artístico, como lhe ouvi chamar, ia dando as suas orientações,
atendidas pelo Grupo.
Os pares foram-se revezando. E foi num desses
momentos que se sentou na nossa mesa um bailarino que me tinha chamado a
atenção aquando da sua entrada. Vinha de fato e gravata. Ágil, tirou o casaco e
a gravata, colocou-o nas costas de uma cadeira e, sem perca de tempo, deu a mão
a uma moça e entraram na dança. Estava agora ali a beber uma garrafa de água e
eu, mais curiosa que atrevida, dei início a uma conversa com ele, com o José
Luís, como simplesmente se apresentou.
E o que
me contou o simpático José Luís? Expressando-se num português bastante correto,
a sua conversa merece ser registada na primeira pessoa. Vamos ouvi-lo:
“Nasci em Ponte de Lima e sou filho de dois
minhotos que emigraram para França quando eu tinha apenas dois anitos. Fixaram-se
em Marselha, cidade onde já se encontravam uns nossos conterrâneos. Vou ali uma
vez por mês, visitar a Família. Em Marselha já nasceram os meus dois irmãos. Foram
registados no nosso Consulado. São tão portugueses como eu que nasci em
Portugal.
O meu Pai é condutor numa Empresa francesa de
construção e a minha Mãe trabalha numa Empresa de limpeza de um Hospital. São
muito trabalhadores e educaram-nos bem. Nunca nos faltou o pão nem a educação.
Os três, fomos alunos de português na Associação dos Portugueses. A minha
família, em casa, também falou sempre português.
Estudei
lá, em Marselha, e licenciei-me na Universidade de Aix -en- Provence em
Administração de Empresas. Fiz Erasmus em Lisboa. Vim trabalhar para aqui, sou
diretor de um Hotel e gosto de viver em Andorra. Aqui, os portugueses são muito
respeitados por toda a gente e apreciam muito as nossas qualidades de trabalho.
Já tenho muitos amigos portugueses e espanhóis.
Sinto-me bem. Não há qualquer
tipo de discriminização. Em Andorra, o pessoal é bem-vindo!
Vamos
a Portugal, visitar a nossa Família e os nossos Amigos, duas vezes no ano: no
Natal e no mês de agosto. Vamos todos matar saudades de Portugal, aliviar a
alma e receber os mimos. O mês de agosto é o melhor mês do ano, mas tem um
defeito, é curto, passa muito depressa!
Conto-lhe
um dos nossos hábitos: ao atravessarmos a fronteira, em Vilar Formoso, cantamos,
em coro, o Hino Nacional. É um entusiasmo louco! Lembro-me de falharmos uma vez
porque chegámos a dormir. Quando acordámos e vimos que já tínhamos passado a
fronteira, refilámos tanto que os nossos Pais nos pediram desculpa e, a partir
daí, … o Heróis do Mar nunca falha!
Nunca, nunca! Também não me falha o noticiário das 8 da noite. É a minha
companhia do jantar!”
Fui uma
ouvinte disciplinada, perante o entusiasmo descritivo do José Luís. Fiz pouquíssimas perguntas e muito poucas interrupções.
Acabou a
garrafa da água e terminou a conversa porque, desta vez, foi a minhota que lhe
veio lembrar que o ensaio do Grupo ia recomeçar. Estendeu-lhe a mão,
sorridente, e lá foram ambos dançar mais um vira do Minho.
Fiquei a
olhá-los e a vaticinar-lhes um futuro risonho em Andorra. O par, em estatura e beleza,
estavam bem um para o outro, como se diz em Portugal.
Na
viagem de regresso ao Hotel, cheguei à conclusão que todos conheciam bem o José
Luís e a Mizé, sua namorada e seu par no baile. Também ela, com estudos académicos
em Barcelona e empregada bancária no Banco de Andorra.
O marido
da Filomena, nosso companheiro de viagem e jogador no Futebol Clube Lusitanos, fez
grandes elogios a ambos. Entusiasmado, falou da sua equipa, formada por jovens
portugueses residentes no Principado e falou, sobretudo, da felicidade que
sentiu no dia 08 de setembro de 2017, data memorável em que tiveram a honra da
visita-convívio do Presidente Marcelo.
E terminou dando um rasgado elogio e manifestando
uma desilusão: “O José Luís, de vez em quando, ainda arranja tempo para
aparecer nos nossos treinos, mas só é pena ser do Sporting!” Contudo, falando
sobre o José Luís, várias vezes, repetiu a expressão: “é um tipo fixe!” E,
assim, com algum alívio, concluí que, afinal, há tipos fixes no Sporting.
Fiquei também a saber que, à boa maneira da
reserva portuguesa, o José Luís não disse tudo. Junto de uma desconhecida, foi simpático,
falador, mas deve ter silenciado aspetos importantes. Gostei. É uma faceta
muito portuguesa.
Na
despedida de Andorra, no meu íntimo, desejei boa sorte e muitas felicidades a
todos os portugueses que conheci em terras andorranas. Pareceram-me muito boa
gente.
Com o
José Luís aprendi três coisas que ainda não esqueci:
A primeira, que o amor a Portugal é
hereditário, passa de Pais para Filhos, traz consigo identidade, recurso às
origens e manifesta-se no orgulho em Ser Português;
A segunda, a revelação da grande capacidade de
adaptação portuguesa a outras sociedades e a outras culturas, o dar e receber
cultura, partilhando com outros o seu modo de estar no mundo, o seu Ser Português;
A terceira, que já intuía, mas que confirmei
em Andorra, é que, para o emigrante português, as saudades do seu País são uma
constante. Daí, e tendo em conta o contexto na emigração portuguesa, parece-me
encontrar uma das possíveis respostas à pergunta inicial do Concurso da SHIP,
na frase seguinte:
“Ser
Português é ter sempre uma boa parte do coração guardada em Portugal.”
Maria Fernanda Antunes
Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"
ENSAIO
Edição
2021
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