Teleologia do Ser Português – Para além de uma questão de identidade - João Pedro da Silva
O momento apela ao que de
mais profundo radica na alma humana. O estro é acossado por uma força de tensão
que o incita a comprometer-se com um dado resultado e a excluir tudo o resto. Espada
em riste, num ousado movimento, esporeia o ginete, precipitando-se sobre a
turba de antagonistas como um raio que do céu se abate sobre a terra. Aventa
pela fileira das hostes contrárias, quebrando-a. Tentam acompanhá-lo, mas...
não houve tempo! Desapareceu entre o tilintar de espadas, de brados, de sangue
derramado. Ninguém o viu morrer – dizem! O seu corpo apareceu um tempo depois,
após a batalha; só, prostrado sobre a terra, imolado às cores do estandarte e
ao ideal que lhe transcende. Procuremos compreender o denodo contido nesta
acção, mas, primeiro desvelemos o destemido personagem. D. Sebastião, certo? Ou
Carlos, O Temerário? Comum ao rei de Portugal e ao duque da Borgonha, além do
episódio aqui narrado, e do lamentável desfecho, está um certo movimento
ontológico: o ser português. Porém, como definimos o ser? Já Aristóteles (1)
entendia que o ser se diz de muitas maneiras, mas a nós só nos interessa uma: a
que pressupõe a adjectivação de português ao conceito de ser. Uma identidade
portuguesa? Com base em que critério? O genesíaco? Vejamos. A ascendência de D.
Sebastião é por via paterna portuguesa, e por via materna castelhana. Carlos, O
Temerário, tinha, por seu lado, pai borgonhês e mãe portuguesa. A ambos
concorre uma ascendência bipartida por forças de identidade nacional distintas,
que não bastariam para cindir o acto de ser: D. Sebastião pereceu como rei de
Portugal, ao pugnar pela visão paráclita do lugar do seu reino no mundo;
Carlos, O Temerário, duque da Borgonha, que se outorgava de “português”, morreu
a procurar fazer um reino novo no mundo(2). E o que dizer quanto ao
fundador da pátria, D. Afonso I? Era este filho de pai borgonhês e de mãe
castelhana. Está claro, ou pelo menos assim parece, que a ideia de progenitura,
só por si, não basta para explicar o que é o ser; e, em particular, o que é
“ser português”. É preciso assentar essa explicação em
outro lado, em terreno menos movediço. Qual terreno? Haverá na caracterização
do ser elementos invariantes que nos permitam objectivar o que, à partida,
parece diáfano? Problematizemos esta questão; e que as palavras aqui grafadas
sejam, precisamente, uma problematização – delimitar o ser é útil na medida em
que não é redutor. Recuemos até à
Fundação!
O estabelecimento de algo não se faz sobre o vazio; pelo
menos no que respeita as produções humanas – a criação ex nihilo só o Cosmos a teria, e, no entanto, pode-se ser relutante
quanto a uma tal cosmogonia(3). Assim, a fundação de uma pátria, ou
mátria, só acontece quando a gestação de algo essencial atinge o seu termo.
Quando nasceu Portugal? Entre a batalha – ou justa? – de São Mamede e a bula
papal Manifestis Probatum podem-se
contar degraus na ascensão a uma soberania autónoma(4). A tradição
popular narra, porém, que D. Afonso I só fora aclamado rei com a resolução da
batalha de Ourique; ainda que a justa de São Mamede seja o momento histórico
que marque a ruptura do condado para com o Reino de Leão e Castela, e o início
da autonomia face ao poder imperial. Parece claro que a justa não foi o
suficiente para uma tal aclamação, mas tê-lo-ia sido uma batalha de
circunstância? O que ocorreu em Ourique? Entre um evento e outro teria havido
algo... Algo só interpretável teleologicamente; um telos [τελος, fim] que fosse transversal a todos os portucalenses. Conta-se que em Ourique
houvera uma aparição! O que é que apareceu? – pergunta de todo expectável. Ora!
Podia expor aqui o que teria aparecido, mas o que efectivamente apareceu –
porque alguma coisa apareceu, tal como se viu nem as cosmogonias estão assentes
no vazio – exige uma explicação. E o que é que importa isto? Não se poderia
passar sem uma tal explicação, ou quiçá devaneio, para se compreender o que é
“ser português”? Permita-se problematizar o seguinte: se a justa demarca os portucalenses dos leoneses, o coroar
um rei de Portugal não é de somenos importância. Uma ontologia particular
ocorre aqui. Exige-se, por isso, uma explicação, um exercício de pensamento –
que nunca chega a ser devaneio, porque quem devaneia não tem a preocupação em
sistematizar o que pensa. Então, procuremos desvelar a aparição. Recuemos um
pouco mais; ou, antes, avancemos recuando.
Assassinado Viriato,
parecia que o jugo imperial romano não encontraria contestação na Lusitânia – o
‘eu’ [autóctone] se subsumiria no não-eu [Roma]; os montes sagrados no ouro
cunhado ao sabor do câmbio romano. Havia
o perigo não da perda da mera identidade, mas, do modo de ser. Era necessário
afirmar-se. A nova resistência a Roma fez-se sob a égide de um romano, Quinto
Sertório, agora, dux bellorum dos
celtas peninsulares! (5) Para
um povo que assumia o ser como passível de ser manifesto de diferentes maneiras(6)
– mesmo que contraditórias –, estar sob
as ordens de um general romano contra Roma seria perfeitamente natural. Mas
para que assim fosse, teria de haver uma condição necessária e suficiente que
indicasse Sertório como cabeça da oposição galaico-lusitana. Reza a história –
isto porque as histórias, e até mesmo as lendas, parecem exprimir-se como
libações deixadas ao tempo, rezando pelo cumprir de uma dada ontologia! – que
Sertório, por quezílias domésticas inerentes à política romana, procurara auxílio
entre os galaico-lusitanos para fazer guerra a Roma. Conta-se que, na sua
romagem por apoio, fazia-se acompanhar por uma corça branca(8) –
presença do Divino Céltico, ou o próprio Divino consubstancializado – que
auspiciava, na pessoa de Sertório, o caudilho de todo um povo. Sabendo-se que
estas gentes não acreditavam na morte – porque a mesma alma sempre se renova –,
e que o ser se manifesta de diferentes maneiras, a corça albina seria o in hoc signo vinces com o qual se
cumpririam a si próprios. Este ponto não deve ser tido como trivial: sob o
auspício da corça, Sertório já não é Sertório! É algo mais! Deixou de ser o
Quinto Sertório, nascido em Núrcia (Itália), general romano, pretor da Hispania Citor – transmutou-se: é o
“torcido”, o “torque”, o gwyr, o wiriatis, Viriatus(9). Foi a
corça branca, e não mera política, que possibilitou na pessoa de Sertório o
movimento que vai de romano a celta. O genius
loci(10) estava com ele! É, precisamente, esta a
letra, o sinal distintivo que faz com que Sertório seja, ele próprio, nesta
pugna, galaico-lusitano e não romano! Fosse ele romano nunca poderia ter
chefiado uma nova resistência dos povos peninsulares contra Roma. A resistência
de um povo não se faz com elementos que lhe possam ser estranhos! A resistência
é algo, sempre, de muito pessoal – é imanente! Como o leitor poderá já ter
reparado, a corça branca é o telos.
Agora, se Sertório usou uma corça para fins políticos, ou foi usado por Esta –
a Corça enquanto princípio absoluto de uma religião natural –, é outra questão;
teológica e não ontológica(11). O caso é que Sertório passou de
general a caudilho peninsular, reformando-se ontologicamente. Se o foi
genuinamente ou não, friso, não é uma questão que interesse para a
caracterização do ser. Então, o que interessa? A corça! A corça branca! O ponto
desta narrativa não é Sertório, é a Corça – é Ela que dita o fado! Cumpri-lo é a tarefa dos
galaico-lusitanos, porque a Corça é céltica, não é romana! Ao permitir-se ser
tutelado pela corça, Sertório deixou de ser romano. Passou a ser expressão da
resistência autóctone. É certo que foi assassinado! A Hispania isenta do controlo do Senado Romano teve, por seu lado,
uma curta duração. Ele cumpriu o seu
fado. Porém, fiquemo-nos neste ponto. Outras locubrações levar-nos-iam a outras
disciplinas de saber; talvez a outras teses.
Temos, assim, um elemento que nos permite dizer o acto de
ser: o telos. Estamos, por isso, mais
perto de poder dizer o que é ser português. Como? Extraindo outro vulto dos
anais da história: Duarte de Almeida, alferes-mor do Rei D. Afonso V [de
Portugal, obviamente]. Na batalha de Toro, a 1 de Março de 1476, este
alferes-mor estava responsável pelo estandarte real. A pugna entre as forças
portuguesas e castelhanas elevara-se a uma situação limite. Assoberbada pela
dimensão da ofensiva das forças contrárias, a posição de D. Afonso V
prognosticava capitulação. Os castelhanos esforçaram-se por a suplantar. O
mérito de Duarte de Almeida, como alferes-mor, foi ter mantido o estandarte:
cortaram-lhe uma mão, segurou-o com a outra; cortaram-lhe essa, segurou-o com
os dentes; e com o auxílio dos cotos! E isso atesta-o como português? Ter-se deixado
decepar? O ter sido decepado é meramente circunstancial. O relevante é, para a
tese que se desenvolve aqui, não o facto de Duarte de Almeida ser português
porque não deixou cair o estandarte, mas, a ideia de que o estandarte não caiu
por ele ser português! São dois contextos distintos. Se assim se quiser, duas
fenomenologias diferentes: o ser-se alferes-mor; e o ser-se alferes-mor do Rei
de Portugal. O alferes-mor do Rei de Portugal cumpriu-se na qualidade de alferes-mor do Rei de Portugal. Nunca o poderia
ter feito se não fosse português. E não poderia, antes, tal feito ser fruto de
fanatismo e não uma manifestação de um
telos ou de um espírito do lugar? A
pergunta é pertinente, apenas, por permitir uma distinção fundamental: o
fanático é, pela qualidade das acções que leva, um egoísta; já o agente do telos, ou aquilo que, efectivamente, é,
só o é na qualidade da sua imanência, do seu altruísmo essencial. O fanático só
adere ao que lhe parece, acriticamente, uma extensão dele próprio – essa
ligação é tanto mais cristalizada quanto o ‘eu’ é mimado pela ideia de extensão(12).
O ideal a que adere sofre com isso porque está enodado pela pessoa do fanático:
o ideal é a máscara do orgulho do fanático por si mesmo. Agora, o agente do telos, simplesmente, é. Não há nada que
lhe seja extensível – o que quer que haja de externo a ele, só lhe será
complementar, mas não extensível. Duarte de Almeida ao não permitir que o
estandarte caísse, não tinha em si uma atitude anancástica. Apenas não podia
deixar cair o estandarte – não estava nele essa possibilidade. Sacrificou-se no
altruísmo da sua função. A queda do estandarte real é mais do que a queda do estandarte real: é dar a parte fraca ao rei,
cabeça de um povo, canalizador de diferentes gentes, de diferentes terras, com
diferentes forais e leis; é deixar cair uma afirmação de ser coletivo. É neste
contexto, enquanto alferes-mor do reino, portador do estandarte real, que,
Duarte de Almeida, encarna Portugal! Saltou da sua individualidade para a colectividade
através da participação do genius loci,
manifesto no estandarte na qualidade de telos.
É esse o seu altruísmo! Por esse motivo o estandarte não caiu! Até poderia ser que não simpatizasse com a
pessoa do rei, porém, cumpriu-se como alferes-mor português. O ser português é
a condição que lhe permite realizar, competentemente, o cargo de alferes-mor do
Rei de Portugal. Viveu decepado e morreu na miséria. Lucrou, sim, na honra do
povo. Naturalmente, o exemplo de Duarte de Almeida não implica que para o acto
de ser se tenha de colocar em extremos existenciais. É crível que Duarte de
Almeida tivesse equacionado a sua posição; porém, concorreu ao cálculo o telos. O telos imana da congruência do ‘eu’ – Duarte de Almeida – com o
papel de alferes-mor do Rei de Portugal, numa unidade ontológica. Trata-se de
um sincretismo, de uma oculta concatenação, que se encontra para lá de uma
psicologia do indivíduo. O genius loci
é, podemos dizê-lo, a atitude psicológica – até mesmo, se o ousarmos,
espiritual – de um povo(13). Esse princípio, designemo-lo assim, se
consubstancializa para que haja ‘ser’, e essa consubstancialização é o telos. Dito isto, convém acrescentar
que nem sempre essa consubstancialização é consciente. Esse princípio nem
sempre o vemos. Aquilo que se é mas que ainda não se viu é superior àquilo que
se mostra. Mas D. Sebastião e Carlos, O Temerário, viram-no! E, talvez, por isso
tenham morrido! Porém, o que viram? O que viram eles? Que revelação fora essa que
lhes permitiu serem agentes de uma ideia maior?
“Não te apareci deste modo, para acrescentar tua fé, mas para fortalecer
teu coração nesta empresa, e fundar os princípios de teu reino em pedra
firmíssima. [...] [E]u sou o
fundador, e destruidor dos Impérios do mundo, e em ti, e tua geração quero
fundar para mim um Reino [...] e
ficará este Reino santificado, amado de mim pela pureza da Fé, e excelência da
piedade” (14).
Esta terá sido a revelação que D. Afonso I recebera: a
revelação de um país; um reino. Uma tal ideia, visão, de Portugal é um
insubstancial macro-cósmico, uma egrégora, feita substância no plano
micro-cósmico, no indivíduo. Ouvimo-la sussurrar ao ouvido, proferindo
mistérios, conhecimentos herméticos acerca de nós mesmos; e ouvimo-la na medida
em que a sua voz ressoa em nós. É preciso que o próprio seja capaz de
ressonância, tal como o diapasão, caso contrário ela não se faz sentir – e na
medida em que se não a sente é como se ela não existisse! Vibra-se e a vibração
compõe a realidade; o ritmo é o compasso do mundo(15). Conhecemos as
coisas tal como elas são pelo modo como vibram. E ouvimo-la! Ouvimo-la e
sentimo-la! Sentimo-la no cantar da gente, nas vozes dos trovadores populares.
Sentimo-la nos sons da gaita-de-foles, da guitarra, do cavaquinho. Sentimo-la
no movimento do vira, do fandango, do corridinho. Ela pulsa de vida! Ela pulsa
de vida, em nós! É uma manifestação de ser quando não é um reconhecimento – e
reconhece-se quem de si se esquece! Uma ideia que se sente não é uma abstracção
– é cultura!
Por isso, ousado
movimento de D. Sebastião é o seu ressoar! E ainda ressoa, pelo que não morreu!
Ressoa algures no horizonte, aguardando, naquela ilha que dizem encantada, por
uma nau que em tempo oportuno o traga numa manhã de nevoeiro. Ressoam, também,
todos os egrégios avoengos que sendo mortos estão vivos, influindo nos aqui
vivos, por vezes mortos, o vigor anímico da vida que se fez mito! Pois mortos
são aqueles que privados de mitos estão! E pior seria se não houvessem
avoengos que em nós vibrassem! Ter-se-ia de ir buscar a vida a outro lado,
mesmo se sujeitando a ser apátrida em terra própria! Apátridas são os que têm
pátria que vive de mitos alheios!
Podemos, agora, compreender a tese
escatológica que subjaz a esta exposição: “ser português” é a expressão de uma
condição tal que português. Essa condição assume-se como genius loci que é, simultaneamente, telos que se cumpre.
João Pedro da Silva
Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"
ENSAIO
Edição
2021
NOTAS:
[1] Aristotle, The Metaphysics
(London: Penguin Books, 2004).
[2] António Quadros, Portugal,
Razão e Mistério: A Triologia (Rio Maior: Alma dos Livros/Fundação António
Quadros, 2020).
[3] Relutantes a esta ideia
teriam sido, também, os gregos na elaboração das suas cosmogonias. Cf., Reynal
Sorel, As cosmogonisas Gregas, trad. Paula Guerreiro (Mem Martins: Publicações
Europa-América, 1996).
[4] José Hermano Saraiva,
História de Portugal (Mem Martins: Publicações Europa-América, 2004).
[5] Assume-se, hoje, a
proveniência Ibérica dos Celtas, enquanto grupo étnico, com detrimento da
hipótese de Hallstat. Cf., Barry Cunliffe, & John T. Koch (Ed.), Celtic
from the West: Alternative Perspectives from Archeology, Genetics, Language and
Literature (Oxford: Oxbow Books, 2012).
[6] The Element Encyclopedia of
the Celts, 2013, s. v. “Shapeshifting”.
[7] José d’Encarnação,
“Sertório, general romano: guerrilheiro e mito?”, Actas do seminário Memória,
Mito e História – O Sacrifício de Almeida (2008): 99.
[8] The Element Encyclopedia of
the Celts, 2013, s. v. “Stag”.
[9] O Viriato seria o portador
do torque; chefe. A questão antroponímica admite, porém, outras etimologias.
Cf., Armando Coelho F. Silva, “O nome de Viriato”, PORTUGALIA XXIV, 24 (2003):
47.
[10] I.e., espírito do lugar.
[11] Possivelmente teocríptica.
Cf., Eudoro de Sousa, Mitologia/História e Mito (Lisboa: Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 2004).
[12] Manuel Laranjeira, “A
Doença da Santidade” (Dissertação, Escola Medico-Cirurgica do Porto, 1907):
24-25.
[13] C. G. Jung, Os Arquétipos e
o Inconsciente Colectivo (Petrópolis: Editora Vozes, 2007.
[14] Fr. António Brandão,
Terceira Parte da Monarchia Lusitana (Lisboa: Pedro Craesbeck, 1632): 120
[15] Gaston Bachelard, “A
Ritmanálise”, in O Essencial Sobre Ritmanálise, ed. Rodrigo Sobral Cunha
(Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2010).
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