Sou portuguesa: a minha História, de um país, é a de um povo - Susana Laires

Sou portuguesa. Os cabelos negros, ondeando, cheiram a maresia. Os olhos castanhos por mim vão falando, e os meus lábios vermelhos proferem sílabas cortantes, porque as palavras que entoo não são cantadas, nem ondulam no ar, como em além-mar, mas declamam poesia. No semblante transparece-me sempre uma alegria, triste, de ser alegre na tristeza, de olhar para o céu vestido de cinzento, mesmo quando o dia sorri de azul e não pesa.

Trago sonhos e sonhos na algibeira, que definem a minha História, um país e uma nação inteira, e me fazem fervilhar o sangue, diluído de mil povos de todos os cantos do globo. Foram eles que aqui deixaram esta inquietude, de conhecer mais, de embarcar em jornadas para atingir a plenitude. De ultrapassar as barreiras, de quebrar fronteiras, e de conhecer novos mundos. Nunca estive orgulhosamente só1. Sempre fui orgulhosamente una. Uma figura com mil rostos, mil cores, mil razões, e uma mesma alma lusa: ousada e arrogante, de quem não se governa, nem se deixa governar2.

E é daí que vem esta tristeza, da expectativa de ser grande, sendo pequeno, de o céu almejar. É querer chegar ao futuro tendo as amarras do passado a pesarem sobre os pés. É um olhar para o horizonte, sempre turvo, da saudade, não é? Essa nostalgia que não tem tradução em lado algum e sob a qual me curvo. Uma palavra tão pesada que nos funde, baralha o conto do país e do povo e os confunde. E uma esperança estúpida no meio de toda esta agonia, de que a História se possa repetir um dia, e que David torne a derrotar Golias.

No imaginário trago todas estas lendas, contadas e recontadas séculos, sobre como os meus antepassados, pequenos, superaram provações como Hércules. Pairam ainda lições de lusitanos que ousaram desafiar impérios, traçaram rotas pelos hemisférios, sem se deixarem travar por inimigos, por feras, intempéries ou gigantes feitos de pedras3. De poetas e guerreiros, e de guerreiros poetas, carregando a espada e a pena4, desafiando e vencendo mortes certas. De um povo que encheu o mar de sal, com lágrimas de tristeza, mas provou que a alma não era pequena5 para navegar com tanta destreza.

É por isso que no coração trago rios de vermelho, de sangue derramado. Foram-se-me os castelos e as moedas, ficou-se ainda o verde6 da esperança. Posso parecer pessimista, mas na verdade sou otimista. Porque só um otimista sonha, esperançado, e fica triste na espera, mas não desiste na perseverança. Ainda parece ser a esfera armilar a guiar-me os sonhos e o destino, como um fado divino, que, como mártir, é triste no caminho, mas que se alegra com a perspetiva… de chegar. Mas não será tudo um problema de expectativa? Uma ambição desmedida para algo provar?

Nos meus ouvidos ecoam sempre preces para os alcançar, o choro das guitarras portuguesas a cantar. E eu e o mundo sorrimos e orgulhamo-nos desta cultura triste e nostálgica, desta nossa resposta nevrálgica aos desafios do dia a dia. De nunca estarmos bem, mas irmos sempre andando, de sermos insatisfeitos, porque fomos maiores sonhando. De vivermos, no quotidiano, ano após ano, a divagar pelo imaginário de um novo império7 sem mar nem terra, mas com a igualdade como critério. Ele que venha, que o anseio, que recebamos tudo e todos de coração cheio, porque o português é sereno, gentil e hospitaleiro, e a reconhecer os erros do passado deve ser o primeiro. Povo de alma emigrante, e de espírito errante, que vejas eternamente Portugal na unidade, porque o sangue que nos corre nas veias sempre foi e será o da diversidade. E tudo isto pode soar a utopia ou quimera, mas também este país antes de o ser, já o era.

Ah, sim, os portugueses, os sonhadores! Quis o destino que o primeiro sonhasse com uma “nesga de terra debruada de mar”8, que contra a própria mãe lutasse, para o sonho se concretizar. Deus quis, o homem sonhou, a obra nasceu9: um país novo e pulsante, que um dia seria eu. E esta rebeldia resultou numa luta que se estendeu por séculos, pela independência, que foi ganha tantas vezes que se saudou o povo luso pela resistência. E como descrever a História de um povo inteiro numa palavra? Resiliência.

Desde esse dia que a minha voz clama por liberdade, com a mesma chama e intensidade, gabando o título de nação da Europa com mais idade10. Mas também errei, também me perdi. Durante todo este tempo fui rainha e plebeia, mas nunca me rendi. Nas rodas e rodas da sorte, já me calhou tudo, menos a morte, mesmo quando perdi a coroa e fiquei com os bolsos vazios, mesmo quando caiu Lisboa, ou não voltaram navios. Mesmo quando me selaram a boca com o carimbo da ditadura, mesmo quando me ataram as mãos com a crise que ainda perdura. Tantas provações pintadas em azulejos, como manifestos de coragem, retratam mais do que almejos de ir além da desvantagem.

E ainda assim tremo, e temo muito, na realidade, se não por medo da falha, pelo meu complexo de inferioridade. É que ser português é mais do que ser insatisfeito, é rezar pelo fado e guardar- lhe respeito. É avançar pé ante pé, cuidadoso, sempre a medo, é preferir viver com pouco, mas honroso, do que perder tudo cedo. Estar constantemente neste paradoxo de ser temente sendo corajoso, de estar pacificamente embrenhado no tear que alguma moira teceu11, sem nunca deixar de tentar alcançar o céu. O português é um ser complexo, aparentemente desconexo, sorridente na tristeza por sistema, tão intricado e belo como um poema.

Seria possível definir o que é ser português um dia? Se não existe forma de explicar o que é a poesia, como classificar toda esta gente, tão triste e contente, que vê alento na agonia? Filhos do mar, e da arte do desenrascar, que levais a saudade como guia, povo do campo, trigueiro, que fazeis do amor celeiro, ensinai-me que palavra escolher, para que fielmente vos possa descrever. Fadista que encantas as ruas da capital, varina que sacudis o avental, amolador de bicicleta pelas ruas, fazei de minhas palavras tuas. Prisioneiros na rotina desta Lisboa menina, nesta selva repleta de alfacinha, tereis uma perceção igual à minha? Filhos do Norte e dos montes, da cidade das seis pontes, terra de quem nunca tremeu12, talvez o digas melhor do que eu. Rebeldes pacíficos a Sul, onde o céu é sempre azul, descendentes do berço da liberdade, fazei da minha voz a vossa vontade. Habitantes do paraíso, que vives afastados nas ilhas, será que comigo partilhas algo mais sincero e preciso?

É que a nossa língua portuguesa tem tanto de bela e de riqueza, como de escassa e traiçoeira, para poder abarcar uma nação inteira. Mas questiono-me ainda quem pode escrever sobre todo este povo, calejado e saudoso, sem ser em ode? A minha história, a de um país, a desta gente, se não fosse contada em epopeia soaria a diferente. Porque eu sou portuguesa, filha do mar e da maresia, e as minhas palavras são cortantes, mas declamam poesia.

 

Susana Laires

Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"

ENSAIO

Edição 2021

 

NOTAS:

[1] Referência: Expressão cunhada por António de Oliveira Salazar.

[2] Referência: Júlio César: «Há nos confins da Ibéria, um povo que não se governa nem se deixa governar».

[3] Referência à lenda do Adamastor, em «Os Lusíadas», Luís Vaz de Camões.

[4] Referência: Luís Vaz de Camões, «Os Lusíadas»: «Numa mão sempre a espada, e noutra a pena».

[5] Referência: Referência ao Poema «Mar Português», Fernando Pessoa, em «A Mensagem».

[6] Referência: símbolos da bandeira de Portugal: cores vermelho e verde, besantes de prata, castelos e esfera armilar.

[7] Referência ao Quinto Império, Fernando Pessoa, em «A Mensagem».

[8] Miguel Torga, 1950, «Pátria».

[9] Fernando Pessoa, poema «O Infante», em «A Mensagem»: «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce».

[10] Portugal é o considerado o estado-nação mais antigo da Europa, tendo sido fundado em 1139.

[11] Mito da mitologia grega: as Moiras teciam e cortavam os fios do destino.

[12] Referência ao Porto, a cidade Invicta.


 

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