Ser português: um coração que bate mais forte


Tento um voo raso e ainda assim turbulento: o de buscar palavras que tocam o mais fundo das nossas raízes. É uma senda desafiante se o caminho (e o seu destino) é desconhecido. Escrever quem somos exige antes de mais saber quem somos – saberemos alguma vez?

Assim é se não carregamos apenas as nossas histórias (ou as nossas memórias) – carregamos as histórias (e memórias) de todas as pessoas antes de nós. Somos um resultado, nunca um instante. Pois a esse reconhecimento se chama raiz. Até certo ponto, a essa herança chama-se pátria.

Carregamos também o momento: as histórias (e memórias) de todas as pessoas do nosso momento. Com quem partilhamos o espaço e o tempo, a quem nos damos e de quem recebemos, com quem nos cruzamos num acaso irrepetível. Somos uma soma, nunca um resultado único. Pois a essa experiência se chama vida.

Os laços entre todas estas partes (e as suas tantas ramificações) forma o que somos – sem que saibamos definir plenamente esses laços. Assim permanecemos sempre aquém da maravilha imensa que é a criação.

Então é-nos intrínseca esta tão intensa questão: quem somos (e deixamos de parte, por ora, por que viemos e para onde vamos). Convivemos permanentemente com esta questão, debatemo-nos pontualmente, mas raramente lhe dedicamos o tempo e compromisso necessários para lhe encontrar resposta. É ir tão longe, tão mais fundo, nesse voo desafiante. Tentemos.

Nesses laços que nos formam a identidade há uma parte que nos coloca em partilha: o da nacionalidade. Não se trata nunca de um rótulo, ou de um limite, não é mera fronteira, mas uma definição do “eu” com o “outro”, uma afirmação do “nós”. Um não se completa sem o outro: o ser inteira-se em relação.

A nacionalidade é uma identidade que nos é definida à partida – qual herança que recebemos à nascença, sem que tenhamos uma palavra a dizer – e ainda que a tentemos rasgar ao longo da existência não deixa nunca de perfazer raiz. É um laço que não escolhemos e que, no entanto, nos define em conteúdo, forma, em cada parte mais ínfima ou maior que conhecemos (ou desconhecemos) em nós – e que de passos em volta insistimos em compreender o tanto que significa. Se há nesta identidade um compromisso que nos implica. Vamos em busca.

Escrever quem somos passa por escrever quem sou. Estas palavras que tento nestas páginas despontam de um (meu) reconhecimento, de um encontro (ou reencontro) comigo, de um despojo, se com a humildade de quem se procura. Todas estas palavras são uma viagem profunda, honesta, despretensiosa, às sementes que floriram em ser-se português.

Pois ser português é, antes de mais, semente: semente deitada à terra que lhe era destinada, à beira mar, e na qual crivou raízes tão fundas de quem conhece esse destino. E ainda que enraizada em terra sua, germina e multiplica à conquista de todas as terras possíveis – se a História se constrói na senda do impossível.

É uma certeza tão firme, tão arraigada à essência, do lugar que nos pertence, do espaço que conquistámos, da História que escrevemos, que se torna chama intensa: filhos da liberdade, da independência e da dignidade. Firmes e livres, de peito feito (e aberto), a fazer (o próprio) caminho.

É saber que dessa História se fez uma alma velha, que do tanto que conhece e conquistou, do tanto que viveu e que criou, de imaginação tão cheia, de memória tão repleta, tantos feitos, tem a paciência da espera – que sempre alcança. E nessa espera se tornou povo de esperança – esse rastilho que deixa rasto de amor.

É deixar em legado de um povo feito ao mar, ao mundo, à conquista: o alento – de quem sonha –, a entrega – de quem parte – e o estoicismo – de quem sempre regressa.

É ter na Fé um colo para a tristeza, um abraço que embala, uma mão que nos impele em frente, um propósito maior para os dias – e o festejo de cada alegria. Essa Fé que ninguém define de onde vem nem onde vai, se em Deus, na vida ou nem se sabe bem em quê, mas que se leva escrita no corpo. Que é alicerce no coração de cada português. Que é fonte – e também foz.

Quando tem a sua Fé maior na família. Essa palavra onde cabe a vida toda – que pode ser de casa, grande ou pequena, de núcleo ou alargada, de sangue ou eleita. Família é princípio e reduto. Não importa o tamanho do sonho, o momento de largada, os desvios do caminho, é sempre cais de chegada – onde o coração encosta e se renova. Onde o amor começa e nunca acaba.

Esse amor que há no colo de uma mãe (portuguesa): o regresso de todas as viagens, um abraço (e um coração) sempre aberto, uma casa onde nunca perdemos lugar, uma mão que nunca desenlaça. O perdão pronto, a defesa feita, todas as certezas desfeitas. Para quem somos todas as possibilidades, imensos, maiores. De onde partimos, mas onde sempre ficamos. Uma palavra casa.

Esse amor que há nos braços (os mais firmes) de um pai (português): um olhar atento que nunca se desvia, uma conversa permanente de conforto (e consolo), o primeiro e último abraço a procurar, a bússola apontada a Norte. Se o orgulho fosse um nome. Se a paz fosse um sítio. Se bastasse uma palavra para definir o afecto. Outra palavra casa.

Esse amor que há na mesa de uns avós (portugueses) – um nome tão pouco para o amor ao dobro, para quem acolhe infinitamente, para quem alenta incondicionalmente. O regaço eterno, a voz mais doce, os conselhos que não pertencem ao tempo. Uma mesa sempre posta, uma panela cheia para dois ou para dez, a conversa farta, onde a ternura regenera e serena. Cenário de todas as histórias (e memórias). Uma palavra testemunha.

Esse amor que há numa família (portuguesa) em romaria incessante: que se reúne no Natal, na Páscoa, nas férias de Verão, nos baptizados, casamentos e funerais, porque sim e porque assim. Em conversas infinitas, o tempo demorado, um ano inteiro que se encaixa em instantes – como se nunca se perdessem de vista. Escola de todas as experiências, caneta de todas as narrativas. Espólio de emoções para a vida fora. Palavra pausa – e recomeço.

Esse amor que há num país que sabemos casa e do qual também fazemos colo.

Ser português define-se em partilha – é um nome colectivo, nunca singular. É-se em comum e em comunidade. Esse “nós” feito de nós tão intricados que nem imaginamos onde começam e acabam. E um nó maior: amizade. Uma história partilhada: uma noite de copos e fados em Lisboa, a farra à beira rio de um São João no Porto, os meses de Verão de bola na mão numa praia do Algarve, os bonecos de beira de estrada nas idas à neve na Serra da Estrela, uma lareira acesa depois de uma caminhada no Gerês, os fins de tarde de sol tão quente como se sente tão só no Alentejo.

É um rol de memórias que desdobra a história de cada um de nós – e a torna a mais bonita de todas as histórias: simples assim.

E neste colo – força motriz – há um abraço que se desata: ao outro, ao mundo. Do seio que é a nossa casa, onde o amor reside, sobra para quem de fora. Onde há amor, há lugar. Um povo que conhece o amor sabe reparti-lo – e alimenta-se assim.

(Ainda que comecemos por olhar de lado: primeiro estranha-se, logo depois entranha-se.)

Então é uma janela entreaberta e uma porta encostada para quem quiser entrar. Num costume de hospitalidade. Recebemos os outros como os nossos. Pois, lá está, onde há amor sobra amor. Onde cabe um, cabem dois ou três – ou tantos quantos quiserem vir. Abrimos os braços como quem abriu o mar.

É uma herança de memórias e de tradições – como quem vai ao passado buscar futuro. De quem faz do seu pretérito fado e da sua História bandeira – ainda que sempre em comparação com o vizinho do lado, ainda que sempre de olhos postos nos demais. De quem segue em frente, sem nunca deixar de lembrar o que lá vai. De um velho no banco de jardim a comentar “esta juventude perdida”, enquanto o jovem que passa olha e pensa “o coitado do velho”. De quem se sente já crescido e se julga cidadão do mundo e, ainda assim, tem no peito o seu lar. De quem partiu à descoberta já no ensejo de voltar. De quem se fez ao mundo, mas com a raiz bem no lugar. De quem já não fala em “pátria” e contudo a sente tão cá dentro.

Que tem a maior tradição na solidariedade. É ir de peito feito e arma em punho quando a necessidade chama. É ter escrito na alma um só preceito: cuidar. É ter na entreajuda uma insígnia e fazer da união tema de todas as lutas – e não há, assim, luta que não se vença. É um país que mais parece uma rua de aldeia em que todos se conhecem e todos são vizinhos que se invejam, mas por quem dariam o peito à bala e correriam de balde na mão se um incêndio ameaçasse a casa ao lado. É uma boca cheia e os gestos fartos para dizer mal do alheio, mas sempre de porta aberta a quem precisa, a quem perdeu, a quem regressa.

É um povo que discute futebol como quem lava frustrações para logo se juntar e abraçar quando joga a equipa nacional.

É uma crítica constante: ao que está bem, ao que está mal, ao que mudou, ao que ficou, ao que era, ao que vem, ao que não vem. Que percebe a lei para decidir como a quebrar. Mestre na arte de dar palpite, treinador de bancada, que (sabe) faria sempre melhor. Que esbraceja, mas sempre aceita – pois assim tem determinado nas veias. Se houvesse um nome para a resiliência seria português.

É dizer tão mal do Festival da Canção (ao qual, pois claro, ainda assim se assiste sempre), mas encher o aeroporto para receber quem venceu a Eurovisão – se todos os palcos são importantes para cantar ser português.

É uma filha que a toda a hora diz mal da mãe, porém ai de quem alguma vez disser mal da mãe.

É ter um segredo que todos sabem, porém que não se pode contar. É desconfiar, para logo convidar a almoçar.

É conviver diariamente com a insegurança visceral de quem se julga inferior, de quem se duvida, de quem hesita, porém ai de quem diga que o somos. É levar no peito esta sina (triste, contudo assente) de quem pensa não merecer mais, mas todos os dias faz acontecer. É um povo de trabalho, de muito (de tanto) trabalho. Como só sabe quem tem a família – e o amor – à espera em casa.

É um palco onde a tragédia e a comédia se enlaçam. Onde o fado fez morada. Onde se tocam músicas como quem toca dores: a dor do mar, a dor da guerra, a dor da ditadura, a dor de ser-se pobre, a dor do fado – a dor de quem perde, mas sempre recomeça.

E essa dor maior: a saudade. Um povo do amor só pode ser um povo da saudade. Essa palavra que carregamos como mais um membro do corpo. Que é tão (só) nossa, que só nós sabemos, que só nós apropriamos. Do nosso âmago. Onde pertence a vida inteira, se é o rasto do amor no nosso peito.

É uma casa de portadas abertas para o jardim que convida quem passa. Uma mesa posta e composta, sob a videira, num fim de tarde de Verão, em redor de copos vazios de vinho, migalhas de pão e pratos onde sobra (sempre) comida. Um jogo de bola ao lado, um riso de crianças ao fundo. E tempo para todas as conversas, para tantas gargalhadas, na certeza bonita de quem é feliz assim.

Então, suavemente, demoradamente, assim se constroem as histórias (e memórias) que consumam raiz de todos os que hão-de vir. Passagem – e princípio – do tanto que há-de vir. Numa renovação infinda desses laços que nos erigem.

São estas as sementes que se multiplicam e incessantemente dão em flor.

Nestas palavras que agora terminam ficou o reconhecimento moroso de intenso do que sou. Elas são um encontro (ou reencontro) com uma História (e memória) que levo no cerne de tanto que sou e ainda desconheço – e enfim serenam. Deste voo raso, mas tão fundo, tão ao mais dentro do que somos, fica a expressão aquém de tantos antes e depois de mim. E neste lugar de pousio a que enfim chego, sossego na certeza:

Ser português é um coração que bate mais forte se feito de esperança e de Fé. No amanhã, no que há de ser, no que ainda pode ser.

É ser-se feito de amor. Para o amor. Antes de mais, o amor. No fim, sempre o amor.




Inês Santos Silva

Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"

ENSAIO

Edição 2021

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