Ser Português: as minhas origens e experiências em três Continentes - Joaquim Matusse | MENÇÃO HONROSA


SUMÁRIO

1. Introdução: As minhas origens e experiências em África (Moçambique), Europa (Portugal) e América Latina (Brasil).

2. O que é Ser Português?

2.1. Ser português a partir do contexto de Portugal

2.2. Ser português a partir do contexto de Moçambique

2.3. Ser português a partir do contexto do Brasil

3. Conclusão




1. Introdução

O presente ensaio, é uma reflexão pessoal sobre as minhas vivências e experiências pessoais como cidadão português, nascido em Moçambique, que ainda jovem foi estudar e residir em Portugal, e que atualmente está residindo no Brasil.

A ideia principal do meu trabalho, é demonstrar que ser português - numa perspectiva de vivências e experiências pessoais - é ser um cidadão com uma compreensão mais universal ou aberta do mundo, capaz de compreendê-lo melhor e se adaptar melhor, através de processos de aculturação e identificação com o outro.

Como prova disso, entendo que a minha experiência de vida nos três continentes em que passei, revelou-me que a influência da presença portuguesa desde Moçambique, na forma como se processou a minha educação escolar, cultural, social, cívica, cristã e política; constituiu em mim um conjunto de instrumentos de inserção no mundo e, sobretudo, proporcionou-me uma capacidade de abordar e compreender da realidade de cada individuo, cultura e meio social, possibilitando-me uma identificação e integração melhor na sociedade.

Nasci em Moçambique em 1970, e lá permaneci até 1992. Tive uma educação escolar rígida, exigente e punitiva, como forma de persuasão à aprendizagem e à disciplina. Tinha de saber as matérias escolares e ter um comportamento exemplar, no que concerne ao respeito pelas regras instituidas pela entidade escolar e aplicadas pelo professor.

Além da educação escolar, tive uma educação familiar alicerçada nos padrões da cultura urbana e cristã, deixada pela presença da colonização portuguesa.

Além disso, a nível familiar, tive influências oriundas das origens dos meus pais. O meu pai, nascido no interior do sul de Moçambique (Chibuto), com uma educação mais tradicional e militar, mas convertido ainda jovem ao cristianismo, permitiu-me conhecer o lado real das tradições da cultura do seu povo e das linguas maternas do sul de Moçambique. Por outro lado, a minha mãe, nascida na cidade de Lourenço Marques, mais urbana e com uma educação mais formal, permitiu-me as vivências da cidade e aprendizagem da lingua portuguesa. Essa realidade, foi desde o início, muito importante no meu processo de formação como cidadão e homem, permitindo-me entender as diferenças, adaptar-me e saber lidar com elas.

Desde a infância, fui educado dentro da igreja, com princípios e valores do cristianismo. Os meus pais tiveram desde sempre uma relação muito próxima com Portugal e com missionários oriundos de Portugal, Brasil e Estados Unidos. Mas, foi sobretudo com Portugal, que tivemos uma maior proximidade cultural e de relacionamento com a comunidade portuguesa de Moçambique, e com pastores e missionários vindos de Portugal. Esse contato e relacionamento, deixou em mim marcas de afetividade e sentimento do que é ser português, em comparação com o que eram os brasileiros e norte-americanos.

Em 1992, deixei Moçambique e fui estudar Teologia e Economia em Portugal. Estudei, respectivamente, primeiro em Lisboa, e depois em Évora. Chegado de Moçambique com 22 anos de idade, tive que me integrar numa nova cultura e país completamente diferentes, e com exigências impostas por um curso superior, sem o suporte afetivo e presencial da família. Nessa circunstância adversa, foi muito importante a convivência com colegas e amigos retornados de Portugal, que traziam memórias de África, e uma capacidade de me entender e apoiar na inserção social e cultural que precisava.

Em Portugal, mantive o meu envolvimento com a igreja, com a vida social e cultural, e, naturalmente, com o mundo académico em que me encontrava. Adquiri a nacionalidade portuguesa, após 10 anos de residência em Portugal.

Tive também a oportunidade de viajar por alguns países europeus, nomeadamente Espanha, Alemanha e Áustria. No convívio com jovens desses países e sua cultura, fui percebendo a diferença que havia entre nós (portugueses) e eles (não portugueses). Num episódio interessante em uma viagem a um Acampamento de jovens na Áustria (Salsburg), eu e mais um colega português participamos numa atividade em grupo com outros jovens, em que teriamos que cantar com acompanhamento musical. No ensaio antes da actividade, uma das cordas da viola rebentou. Com esse incidente, a nossa participação ficou comprometida porque não havia tempo útil para um novo ensaio sem viola. Esse incidente me marcou profundamente, porque revelou como nós os portugueses somos diferentes de outros povos. Senti que se fôssemos um grupo só de portugueses, teríamos improvisado, adaptado, reinventado, em tempo útil, uma participação sem viola. Então, naquele momento, percebi, que ser português, é ser diferente dos outros, é saber entendê-los e perceber que sabemos melhor do que ninguém, nos adaptar a situações novas e diferentes.






2. O Que É Ser Português?




2.1. Ser português a partir do contexto de Portugal

Em Portugal, fui recebido como preto, moçambicano, coca-cola, com sotaque engraçado, vítima de piadas preconceituosas, mas não discriminatórias. Fui bem recebido, porque rapidamente também percebi que tinha que aceitar as minhas diferenças e peculiaridades. Esse processo de identificação comigo próprio e com o outro, iria ser fundamental para me integrar e me identificar com o novo contexto de vida em Portugal. Eu tinha que perceber que sou moçambicano (mais tarde nacionalizei-me português); sou preto, mas também sou como eles, porque sou português. Tinha que entender porque se riam de mim e, porque, ao mesmo tempo, aceitavam-me do jeito que eu sou.

Quando cheguei a Portugal, encontrei uma realidade social muito evidente. Havia muitos cidadãos oriundos de África lusófona (emigrantes) e não só (luso-africanos residentes em Portugal). Nas ruas de Lisboa, e bairros periféricos, encontravam-se muitos africanos, sobretudo imigrantes de fala portuguesa, inglesa, francesa e outras origens.

A compreensão dos parâmetros históricos e os trajetos pessoais e de grupo que originam a condição social dos luso-africanos mostram a condição híbrida de que são portadores. Ao mesmo tempo, asseguram semelhanças frente ao quotidiano das famílias portuguesas e expressam-se diferenças que sugerem a existência de relações diversas ao mesmo tempo que afinidades comuns, com portugueses e com outros africanos. Neste sentido, entram em jogo processos constitutivos da identidade que se expressam através de práticas diárias e representações que fazem de si mesmos e do outro, tanto quanto estes também o fazem com relação a eles. Em meio a questões próprias da condição de ser estrangeiro e não ser, coloca- se ainda, como parte do processo, a condição de classe, permeada pela condição étnica. Como se expressam esses elementos no âmbito da cultura, educação, família, trabalho? Como se estrutura a identidade no caso de populações deslocadas das suas regiões? Como é sentir-se parte e ao mesmo tempo não ser, de um universo diferente do de origem, porém que se apresenta com inúmeros elementos de semelhança? Provavelmente, será nesse jogo das semelhanças e diferenças entre as alternativas do local existentes no campo, que se constrói a identidade. O que seriam essas alternativas? Sem dúvida, elementos do quotidiano propiciadores de mecanismos e estratégias que tornam a vida possível. Assim, a perspectiva do quotidiano, onde operam diferentes códigos e a perspectiva de inserção social numa sociedade de acolhimento, regem processos do esvazimento do individuo tanto quanto do nós coletivo. Pode-se então supor existir entre a sociedade da que se parte e a sociedade que acolhe, um vazio cujo conteúdo resulta das trajetórias históricas vividas, não apenas por seus determinantes sociais e econômicos, mas também em função de um universo simbólico que informa a compreensão do mundo. Foi assim que senti esse processo de transição e de construção da minha identidade em Portugal. Trata-se de uma bagagem cultural que se reordena em razão da vida cotidiana e simbólica, preenchendo o vazio em busca de novas identidades. No quotidiano e em sua prática está em questão ser luso-africano em Portugal. Trata-se, pois, de não ser mais português, ou mais africano e estrangeiro em Portugal, mas ambas as coisas. O mesmo ocorre em relação aos luso-africanos mais antigos, tidos como retornados não-brancos, que num contexto de mudança social e política (a descolonização) em larga escala, optaram por vir para Portugal, possuem ascendentes portugueses - pais ou avós - ou, foram funcionários de administrações coloniais, obtendo assim a nacionalidade portuguesa. São, pois, africanos-portugueses, tal como seus filhos - os novos luso-africanos - nascidos em Portugal.

Dentro desse processo, o imigrante africano de língua portuguesa, com nacionalidade ou naturalidade portuguesa, pensa também ser português, ainda que diferente. Nesse embate, a cultura opera através de um jogo em que semelhanças e diferenças historicamente constituídas, reais e/ou imaginárias, possibilitam construir e desconstruir a identidade própria.

Desde sempre, revela-se aqui que a identidade portuguesa e a identidade da cultura portuguesa possuem muitos pontos de contato entre elas e as identidades culturais dos povos brasileiros e africanos que com elas conviveram por séculos. Desde o século XVIII os portugueses, além de colonizadores, foram imigrantes em suas próprias colônias. Por outro lado, negros africanos têm sua presença registada em Portugal, desde o início do século XV como escravos; mas será na segunda metade do século XX, a partir dos anos 60, que a presença africana em Portugal se fará, mais intensamente, na condição de imigrante e em nome de uma nacionalidade de português africano. Nos dois casos de um lusitanismo atlântico, em que Portugal - Brasil - África se encontram, ocorrem especificidades históricas próprias de um campo de confrontação e de uma realidade de proximidade. Isto significa a existência de uma realidade híbrida entre povos diferentes, com modos de vida diferentes, porém com pontos de contato e de semelhanças que muitas vezes tomam a forma ideal do outro como igual para descobrir na prática suas diferenças. É aqui que se questiona a dimensão de velhos e novos processos de recontextualização e particularização das identidades e práticas sociais assentes no campo étnico e na ação coletiva. Em jogo, na condição de povos deslocados, novos e velhos direitos às raízes, à memória, à identidade.

No entanto, não se pretende aqui deixar de considerar o espaço das subjetividades em que ação e representação se fazem presentes e possibilitam recuperar as dinâmicas das relações sociais e o caráter simbólico que se concretiza nos modos como se inserem em campos da prática. Desse modo, a cultura é sempre processo, em constante actualização. Na desigualdade das condições vividas, relações assimétricas de dominação e subordinação, configuram um campo de tensão e de mudança. Nesse campo, cria-se e recria-se a cultura popular, reforçando seus âmbitos próprios, reiterando ciclicamente atos coletivos que são uma maneira de expressar e renovar a identidade própria. É assim que todo um conjunto de valores culturais, entram em linha de conta, como componentes de um modo de ser e de viver. Nesse contexto, ser africano em Portugal, parece resultar na construção de uma identidade referida a contextos étnicos singulares e historicamente constituídos, revelando-se enquanto etnicidade e, esta, como situação onde segmentos sociais diversos se confrontam.

Com isso, pode-se afirmar que a etnicidade diz respeito às categorias de construção do nós em confronto com o outro e constitui-se como forma política instituída por um grupo face a outros grupos, neste caso, portugueses e africanos em Portugal. Entrecruzam-se, nesse processo, a realidade política a que os grupos se encontram inseridos, a cultura mais geral e o modo como ela opera no grupo. É neste sentido que não se pode deixar de considerar que o movimento de descolonização da África portuguesa (Luanda, Angola, Guiné, Moçambique) exigiu de Portugal abrir-se para um novo entendimento da sua relação com o outro, ou com os outros povos, dos quais Portugal se construiu, se identificou e se realiza. Ser português, portanto, não é apenas uma questão de ser de Portugal, ser europeu ou ser branco. Ser português, é uma questão de essência, de construção na interação e no confronto de identidades que atravessam fronteiras e se realizam na história de convivência e harmonia com as diferenças e semelhanças que se encontram nessas dinâmicas transculturais.






2.2. Ser português a partir do contexto de Moçambique

A realidade luso-moçambicana, sempre foi aparentemente favorável à integração dos portugueses, brasileiros e de seus descendentes. A existência de uma classe moçambicana de “assimilados”, negros especiais por possuírem uma cultura alicerçada na educação e língua portuguesas, apesar de criar um sistema fracturante de classes, onde os brancos eram superiores e os negros os últimos dessa cadeia de hierarquia racial; Moçambique consolidou-se como um país de grandes conflitos étnico-sociais internos, entre povos e tribos nacionais, do que entre nacionalismos construídos com base na colonização portuguesa. Os luso-moçambicanos (portugueses negros de Moçambique), sentiam-se e orgulhavam-se de serem portugueses. Demostravam uma identificação com os códigos culturais portugueses (por exemplo, paixão pelo futebol português, língua portuguesa, gastronomia e até no modo de vestir) e vários outros aspectos identitários.

Por outro lado, os luso-moçambicanos (portugueses brancos de Moçambique), tinham uma relação afetiva com Moçambique e, de uma forma geral, com África. Os luso-moçambicanos (brancos), identificavam-se com a vida selvagem africana, com a natureza, com os cheiros, com as condições de vida ali encontradas, com os códigos culturais africanos e até com o seu modus vivendi.

A relação identitária dos negros e brancos portugueses em Moçambique, foi, de certa forma, uma relação de convivência social e cultural relativamente pacífica, onde havia uma aceitação partilhada das características comuns da identidade de ambos os povos. No aspecto religioso, por exemplo, houve uma aderência dos moçambicanos negros ao Cristianismo, mesmo com integração de alguns traços das religiões nativas.

O que me parece evidente neste processo de identificação do que significa ser português, numa perspectiva de Moçambique, ou africana, é que a colonização portuguesa em Moçambique, foi facilitada, em parte, pela capacidade de identificação dos portugueses com os povos nativos de Moçambique. Apesar da política de diferenciação implementada pelo regime colonial entre os brancos e os negros, os relacionamentos sociais foram pautados por uma identificação e aculturação mútua de ambos os povos. Os portugueses (de Moçambique), sentiam-se diferentes dos portugueses (de Portugal), independentemente de serem brancos ou negros. No entanto, essa diferença tinha a sua substância no seu modo de vida, numa certa africanidade dos portugueses em Moçambique. É nesse sentido, que a minha caracterização do que significa ser português, tem como base de reflexão a ideia de que ser português, é muito mais do que ser nascido em Portugal, ou ser branco, ou ser europeu. Ser português, é ter um sentimento de pertencimento, de identificação, de adaptação com o outro. Ser português, é algo intrínseco, que permite que a pessoa entenda, compreenda, se ajuste, se identifique a um determinado contexto, através de um processo de interação cultural e social com o outro, que eu identifico como a principal característica do que significa Ser Português, desde os tempos das chamadas Descobertas do mundo, até os dias atuais.






2.3. Ser português a partir do contexto do Brasil

De 1970 a 1980, têm-se a imigração da África portuguesa, constituída por profissionais liberais, mão-de-obra especializada que foge ao desemprego e dos riscos de conflitos, aparentemente intermináveis e da perseguição. Portugal e Brasil serão os pólos acolhedores dessa população luso-africana que emigra. O que vale dizer que também a presença africana-portuguesa ou de luso-africanos no Brasil é pouco conhecida.

Contudo, apesar da histórica relação de amizade entre Portugal e o Brasil, e da identificação do Brasil com a África, devido aos processos históricos de construção do Brasil tais como a escravatura, imigração, e outros, o Brasil teve sempre uma relação de afinidade com Portugal. Os luso-brasileiros, continuam a manter a sua identidade cultural bem visível na língua, nas artes, na gastronomia, na música, na preocupação permanente pela preservação dos laços com Portugal e Açores, e de todo o tipo de legado material que identifica a presença luso- açoriana no Brasil.

Em 2012, comecei a viajar pela América Latina, conhecendo o Brasil, a Argentina e o Uruguai. O processo de integração na América Latina e, em especial, no Brasil, foi mais um processo de construção dessa identidade do que significa ser português, ou luso-brasileiro.

Os luso-brasileiros, são cidadãos portugueses e brasileiros em simultâneo. Isto significa, que preservam a identidade portuguesa, mas construíram uma identificação com o Brasil que os permite sentirem-se pertença de ambos os lados.

Ser português, no Brasil, é sentir-se membro de uma cultura luso-brasileira, que identifica Portugal e o Brasil com o mesmo substrato cultural, parte integrante da construção de uma cidadania que integra portugueses e brasileiros numa mesma linguagem, história, cultura e origem. Todos se sentem iguais, apesar das diferenças. Essa afinidade, identidade, adaptação mútua, compreensão, são características transversais que simbolizam o legado da relação histórica do relacionamento dos portugueses pela Europa, África e América Latina.






3. Conclusão.

O que é ser português? Neste trabalho, a minha preocupação foi demostrar com base na minha experiência pessoal de vivência em Moçambique, Portugal e Brasil, que ser português, é ter uma mente aberta para a compreensão das condições culturais, civilizacionais e do modo de vida de cada povo, e, a partir daí, criar processos de afinidade, adaptação e aculturação harmoniosa no novo ambiente em que se coloca.

Ser português, é ser um cidadão universal, no sentido em que o mundo pode ser compreendido e conquistado, adoptado e aceite sem os constrangimentos culturais e identitários que normalmente criam muros e fronteiras, que impedem uma convivência e relacionamento harmonioso entre povos e nações.


Porto Alegre, Brasil
Fevereiro de 2021






JOAQUIM MATUSSE

Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"


MENÇÃO HONROSA - ENSAIO
Edição 2021




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