“O Que é Ser Português?” - Teresa Pires

 

Ser Português é ter na alma o espírito aventureiro e o talento de Luiz Vaz de Camões, a genialidade e a angústia de Fernando Pessoa, a paixão e a inquietude de Florbela Espanca, o estilo criativo e excêntrico de João Cutileiro e de Joana Vasconcelos, a audácia e o espírito visionário de Eça de Queiroz e de José Saramago, o riso contagiante pela capacidade humorística de Herman José, o esforço e a glória de Cristiano Ronaldo.

Os Portugueses têm na alma o fado cantado na voz de Amália Rodrigues, de Carlos do Carmo, de Ana Moura, de Camané, de Mariza e de tantos outros. Sim, claro, temos o fado dentro de cada um de nós… Essa melodia carregada de tristeza, como tão triste é, por vezes, o Ser Português. Mas com o fado sentimos a beleza de uma música comovente e que nos exalta os sentidos até aos seus pontos mais profundos.

Existe também, dentro de nós, uma ínfima parte de algum dos genes de D. Afonso Henriques. Este corajoso rei impôs-se à mãe e à coroa de Castela, através das armas, para criar um novo reino. Com o início do seu longo reinado, em 1143, haveria de nascer Portugal que, séculos mais tarde, partiria à conquista do Mundo. Muitos outros reis se seguiram, conquistando um pouco mais e defendendo bastante os ataques de outros povos. Foram muitas as batalhas travadas em que nem sempre saímos vitoriosos mas lá se conseguiu, por fim, conquistar este rectângulo ao lado de Espanha e com toda a sua costa litoral a tomar banhos do oceano Atlântico (para grande regozijo de todos os amantes de mar).

Numa dessas batalhas, não podemos esquecer a padeira mais famosa de Portugal. Brites de Almeida (1350) foi considerada uma heroína na Batalha de Aljubarrota contra as forças castelhanas. Segundo a história, Brites ficou conhecida por ter morto sete castelhanos que estavam escondidos num forno de pão, apenas com a sua de padeira.

Primeiro conquistámos Portugal aos castelhanos e depois novos mundos ao Mundo. Ser Português é ter o coração exaltado de honra pelos navegadores que partiram à descoberta de novas terras e outros povos, neles deixando a nossa língua materna.

Sucumbiram muitos nessas grandes travessias marítimas e talvez por isso escreveu Fernando Pessoa no poema “Mar Português”:

 

«Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar!


Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.»

 

Ó Portugal, pátria amada, recorda o desgosto que deste ao teu povo aquando da perda de controlo do reino para uns tais três Filipes de Espanha (II, III, e IV). Com a crise da sucessão provocada pela falta de herdeiros legítimos no fim da 2ª dinastia, vieram frotas castelhanas militarizadas conquistar o trono português e seguiram-se os reis Filipe I, II e III de Portugal. Mas estes tempos não iriam durar para sempre e, em 1640, haveria de chegar D. João IV que com a sua liderança na guerra da restauração, Portugal ganharia novamente a sua independência do domínio espanhol.

E o que dizer do português Sebastião José de Carvalho e Melo? Ele deixou-nos a herança da resiliência, de sermos capazes de nos reerguermos perante as maiores adversidades, ao dirigir a reconstrução de Lisboa após o terramoto de 1755.

Em 1763, Marquês de Pombal aprovou uma lei que determinava que os filhos de escravos passavam a ser homens livres e que todos os escravos cuja bisavó já era escrava podiam ser libertados. Mas foi apenas em 1869 que se produziu finalmente a abolição "prática" e completa da escravatura em todo o Império Português (demasiado tarde, diria eu). Relativamente a outra terrível lei dos direitos humanos, sinto muito orgulho que Portugal tenha sido dos primeiros países, do Mundo, a abolir a pena de morte em 1867.

«Portugal acaba de abolir a pena de morte. Acompanhar este progresso é dar o grande passo da civilização. Desde hoje, Portugal é a cabeça da Europa. Vós, Portugueses, não deixastes de ser navegadores intrépidos. Outrora, íeis à frente no Oceano; hoje, ides à frente na Verdade. Proclamar princípios é mais belo ainda que descobrir mundos.» Excerto da carta de Victor Hugo a felicitar Portugal e que foi publicada no jornal “Diário de Notícias” da época.

No dia 5 de Outubro de 1910 proclamou-se a implantação da República Portuguesa, substituindo séculos de quatro dinastias monárquicas. A transição foi conturbada, onde não faltaram conspirações, conflitos e mortes. Mas a história não voltaria atrás. Estávamos perante o início de um novo ciclo em que viriam Presidentes da República e governos com ministros. O pior destes anos foi o Estado Novo e a ditadura de Salazar em que pessoas foram perseguidas, presas, exiladas, mortas, num país onde proliferava a pobreza… Mas este regime haveria de ser derrubado, anos mais tarde, começando novamente outro ciclo: em Liberdade; em Democracia.

Eu, como portuguesa, sou neta de dois ilustres defensores da Pátria. O meu avô paterno foi soldado na Guerra Mundial e o meu avô materno foi marinheiro na Marinha de Guerra.

Mas a minha naturalidade é angolana e quando vim para Portugal fui chamada, muitas vezes, de Retornada. Os Retornados foram muito estigmatizados e, no entanto, vieram contribuir para a modernização deste país que se encontrava parado no tempo devido aos muitos anos de ditadura. Ainda se reconheciam sinais da fome e miséria que se passavam nos campos do interior do país e de onde muitas pessoas emigraram à procura de melhores condições de vida.

Sempre que visitávamos a minha avó paterna, numa aldeia perto de Vila de Rei, os meus pais levavam-lhe pequenos “mimos” de alimentos e lembro-me dela dizer: «Quando quase morria de fome não tinha o que comer e agora, que já não possuo apetite, é que tenho tantas coisas boas de comida que vocês me trazem.» Só anos mais tarde compreendi o que ela queria dizer com isto…

Mas graças a um punhado de valentes e bravos soldados e as respectivas patentes que os comandaram, deu-se uma das maiores conquistas de Portugal: a Liberdade! Bem-haja Salgueiro Maia! A partir daquele dia 25 de Abril de 1974 as coisas iriam mudar. A fome, a miséria e o atraso em que o país tinha vivido durante tantos anos iam desaparecer. Para os mais defensores de Abril, o verdadeiro sonho não se chegou a concretizar. Mas não existe qualquer comparação possível com o tempo da ditadura.

Por isso, Ser Português é também ter retornado à Pátria Natal. Retornados foram aqueles que nasceram em Portugal como os meus pais, por exemplo. Eu fui mais uma espécie de refugiada que fugi, juntamente com a minha família, da guerra civil após a independência de Angola. A fim de impedir a perda das colónias tinham sido enviados soldados da Metrópole para a defesa do império que havia de ruir, mais cedo ou mais tarde, para bem de todos os povos das ex-colónias que assim recuperaram as suas nações. No entanto, não posso deixar de lamentar as perdas das vidas dos soldados nestas guerras coloniais, assim como as de todos aqueles que regressaram feridos e os que ainda vivem, até hoje, com sintomas pós- traumáticos.

Tenho orgulho quando Portugal se esforça por receber refugiados. Tenho orgulho em saber que somos o terceiro país mais seguro do Mundo. Tenho orgulho em termos sido dos primeiros países a legalizar o casamento entre homossexuais. Gosto de saber que associações de voluntariado no apoio aos mais desfavorecidos, que as autarquias disponibilizam espaços para acolher os sem-abrigo nas noites frias de Inverno, embora, neste último caso, tardem em chegar as tão prometidas casas para estas pessoas.

O povo português é esforçado, trabalhador, generoso, solidário, simpático, acolhedor…

Os Portugueses são extremamente solidários quando chamados a contribuir para alguma causa, tendo respondido a uma das maiores, que já se viu em Portugal, com a formação de um enorme cordão humano em defesa do povo timorense e pela independência de Timor- Leste. Ainda hoje me arrepio sempre que lembro as imagens daqueles dias.

Mas, infelizmente, Ser Português ainda é, no caso de certas pessoas, deitar lixo para o chão (principalmente beatas), não separar por categorias os lixos domésticos, deixar o areal das praias sujo e depois todo esse lixo vai para o mar. Ao nível da inclusão social também há muito trabalho a fazer, devendo-se investir cada vez mais na educação de crianças e adolescentes para que não venham a ser adultos marginalizados. A propósito disto escreveu Pitágoras: «Educai as crianças e não será necessário castigar os homens.» E também graves continuam a ser os actos de violência doméstica, a violação de mulheres e crianças, a pedofilia, os actos racistas, xenófobos, homofóbicos…

Em relação à violação dos direitos humanos, mais recentemente, tivemos o caso do cidadão ucraniano, Ihor Homeniuk, que foi cruelmente assassinado no aeroporto de Lisboa. Seguramente existem muitos outros casos que nos fazem sentir mal enquanto cidadãos portugueses, mas este foi para mim um daqueles em que senti mesmo muita vergonha de Ser Portuguesa.

Também tenho vergonha de todo e qualquer tipo de corrupção. Do “chico espertismo” sempre à espera de uma oportunidade para tirar proveito de qualquer situação. E quanto ao hábito português de deixar tudo para o fim, não é muito salutar mas tolera-se, assim como o famoso desenrascanço português que às vezes até corre bem, mas noutros casos dá para o torto.

Os meus pais refizeram as suas vidas em Portugal depois de trinta e tal anos em Angola, para onde tinham partido da Beira Baixa. Tiveram ajuda de grandes amizades, a quem eu hoje chamo de anjos. Então com muito esforço e trabalho conseguiram comprar uma mercearia, na zona de S. Bento, em Lisboa. Também os meus pais foram grandes portugueses!

Vou contar-vos um pouco do que foi a minha experiência enquanto adolescente portuguesa nos anos 80. Como qualquer adolescente que se preze tive as minhas dúvidas existenciais e achava que podia mudar o Mundo… Mas isto foi passando com o avançar da idade e a tomada de consciência de que a realidade da vida é muitíssimo mais complexa do que os nossos sonhos na adolescência.

Era uma aluna razoável, podia ter sido melhor… Mas era feliz. Tinha um bom grupo de amigos na escola com quem, às vezes, saía para irmos ao cinema ou às fantásticas matinés das discotecas. Sim, naquele tempo as discotecas abriam durante a tarde (fins-de-semana, feriados e depois também às quartas-feiras) e que belas tardes de dança Pop/Rock os jovens usufruíram. Mas sabíamos que o fim se estava a aproximar quando começavam a tocar os famosos “slows” (aquelas baladas para dançarmos agarradinhos). Refiro-me às discotecas “Acapulco” e mais tarde “Crazy Nights”, “Loucuras”, “Cabaret”. Do “Coconuts”, em Cascais, mas nesta foi à noite com quase 18 anos. No “Clube de Roma” comemorei o meu aniversário dos 19 anos, também à noite (mas saíamos cedo).

Em casa também gostava muito de dançar ao som de um rádio gravador com as velhinhas cassetes e alguns ruídos pelo meio (não vou nomear bandas e músicos preferidos porque eram muitos e variados). Via televisão apenas com a RTP (canal 1 e 2) mas nada de comando à distância. As minhas séries favoritas foram: “Galactica 1980”; “Uma Casa na Pradaria”; “Verão Azul”; “Father Murphy”; “Quem Sai aos Seus” e principalmente a “Fame”. Aos domingos via os filmes que passavam e eram muitas vezes de índios e “cowboys” do velho oeste americano, filmes com o Elvis Presley, o “Tarzan” com a sua “Jane” e a macaca “Chita” e o fantástico cinema português, a preto e branco, com o grande António Silva, Vasco Santana, Beatriz Costa, Milu, entre outros. Ah, e não me esqueço das belas tardes de domingo em que via o Júlio Isidro, no seu “Passeio dos Alegres”, com o espectacular concurso de quantos cabem num automóvel Mini. À noite, para além do Telejornal e das telenovelas haviam também concursos, do qual destaco o “1,2,3” apresentado pelo Carlos Cruz. E qual fosse o programa em que aparecesse o magnífico Raul Solnado estava garantido o riso do princípio ao fim.

E a maravilhosa Feira Popular! Oh, que saudades do “comboio fantasma”, da sala dos “espelhos mágicos”, do “poço da morte”, da “montanha russa”, da “roda gigante”, enfim, de tantos divertimentos e em que o algodão doce e a fartura quentinha não podiam faltar.

Como disse anteriormente, os meus pais tinham uma mercearia: A Briosa de S. Bento, Lda. Recordo de produtos que me marcaram e penso que alguns ainda existirão e outros já não. Começo por citar as pastilhas elásticas “Piratas” que davam cromos e um jogo da batalha naval em papel, a “Farinha 33” (que ainda hoje adoro), o chocolate em “Milo”. As deliciosas “castanhas piladas” que só não nos partiam os dentes se as deixássemos amolecer na boca. O creme de mãos “Atrix”, o detergente da roupa “Presto” com os seus glutões que devoravam as nódoas. O pudim Flan “El Mandarim” conhecido como o pudim do chinês. O pudim “Boca Doce” que tinha um anúncio televisivo onde se cantava: «O Boca Doce é bom, é bom é… Diz o avô e diz o bebé… O Boca Doce é bom, é bom é!» Por falar em anúncios de televisão, o que mais me marcou (talvez por ser uma romântica incurável) foi o do desodorizante “Impulse” que dizia assim: «E se um desconhecido, de repente, te oferecer flores, isso é Impulse! (…) Impulse, só não te protege de um grande amor!» E a famosa “bomboca” que, durante a época natalícia, passava na televisão o Pai Natal a pedir numa loja fechada: «Eu quero bombocas.» E respondia o dono da loja: «Bombocas? estas… são para mim!» E a lista continuava…

No entanto, existiam muito menos variedade de produtos do que hoje em dia. Mas em compensação, a vida era bastante mais sustentável do que nos tempos que correm. A era dos plásticos ainda havia de chegar, “em grande escala”, com a consequente poluição dos mares, para mal da humanidade.

Talvez se interroguem porque escrevo sobre isto e eu respondo que reviver uma parte das nossas vidas, numa determinada época, também nos revela o que foi ter sido português associando a certas características dessa mesma época.

Tenho muitas saudades daqueles tempos… Ah, Saudade! Palavra tão portuguesa e sentimento tão forte que nos faz viajar através dos trilhos mais recônditos das nossas vidas. Ser Português é sentir e ter saudade como nenhum outro povo. Saudade de um momento especial quando ouvimos aquela música que o recorda. Saudade das brincadeiras de infância, da primeira paixão, do primeiro beijo. Saudade dos amigos que já não vemos há muito tempo e de outros que já partiram. Saudade de uma viagem, de rirmos sem parar. Saudade da Mãe que já não está connosco para dar colo e amor. Saudade chega a doer mas também dá para esboçar um sorriso ao lembrarmo-nos do quanto já fomos estupidamente felizes.

Gostaria ainda de mencionar algumas personalidades que elevam Portugal ao seu mais alto esplendor: Carolina Beatriz Ângelo foi a primeira médica a operar no Hospital São José em Lisboa, a primeira mulher a votar em 1911, foi sufragista, feminista e muito à frente da época em que viveu. Aristides de Sousa Mendes salvou milhares de vidas de refugiados, entre eles judeus, que fugiam ao horror da 2ª Guerra Mundial. O general Humberto Delgado que nas presidenciais de 1958 disse, sem medo, que se fosse eleito demitiria Salazar. Rosa Mota foi campeã a nível olímpico, europeu e mundial na maratona, tendo representado o país nos jogos olímpicos, foi considerada a melhor maratonista de sempre. Elvira Fortunato é uma brilhante cientista e especialista a nível mundial na engenharia electrónica de papel (desenvolveu o primeiro transístor à base de papel, assim como memórias, ecrãs, baterias e mais) vencendo, este ano, o prémio Pessoa 2020. E a propósito da recente doença Covid-19, o general Ramalho Eanes afirmou, numa entrevista, que prescindia do seu ventilador em prol de outra pessoa mais jovem. Honremos os seus nomes e perdoem-me os muitos que faltam referir.

E sobre o momento presente que tem abalado o mundo e Portugal, não posso nem quero deixar de homenagear mais uns heróis portugueses. Não do Mar, mas de Terra firme que continuam numa luta até à exaustão, para cuidarem e salvarem vidas humanas, contra um inimigo invisível chamado vírus SARS-CoV-2 e uma doença, que atingiu o nível de pandemia, designada por Covid-19. O meu enormíssimo bem-haja a todos os profissionais de saúde que estão na linha da frente deste combate.

Para terminar, as primeiras palavras do hino nacional (que adoro): «Heróis do mar, nobre povo! Nação valente e imortal! Levantai hoje de novo o esplendor de Portugal!» (…). Hoje e sempre lutaremos pela dignidade da nossa Pátria, pelo bom nome do nosso País e nisso reside o Ser Português.

Eu sou Portuguesa e Tu?

 

 

Teresa Pires

Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"

ENSAIO

Edição 2021

 

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