O QUE É SER PORTUGUÊS? - Simão Pedro Guedes


Muito sucintamente, dir-se-ia que ser português é possuir nacionalidade portuguesa.

A resposta não está errada, mas não chega a explicar que a legislação sobre a nacionalidade portuguesa não surge ex nihilo, não podendo prever uma atribuição sem critério; antes, procura reflectir, da melhor maneira possível, a existência de um vínculo à Nação Portuguesa que a legitime. Este vínculo, expectavelmente, traduzir-se-á num conjunto de comportamentos normalmente visíveis nos portugueses, que os ligam à História e à Pátria. Não seria correcto dizer que todos os portugueses têm de verificar todas estas características, sob pena de se anular a individualidade de cada pessoa — mas, tratando-se de uma colectividade, espera-se que cada característica reflicta aquilo que se costuma observar na população portuguesa, ou que seria expectável de um patriota português, embora menos como exigência individual do que como tendência geral.

Assim, a reflexão sobre o que é ser português conduz-nos a um conjunto de, pelo menos, dez características que, em conjunto, poderão talvez aproximar-se da melhor definição possível que surja colectivamente a esta pergunta: o que é ser português?

 

1 – Ser português é conhecer a História de Portugal

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.[1]

 

O português que se preze deseja saber porque existe a Nação e o que a trouxe até aqui. Não deseja sabê-lo apenas por sede de conhecimento nem por curiosidade, mas porque se sente parte dessa História — e sente-se parte dela, não por haver vivido esses acontecimentos históricos, mas porque os viveram os seus antepassados e porque se sente inspirado, pelo mesmo espírito que os impeliu a fazer notáveis proezas que engrandeceram a Nação Portuguesa, a realizar feitos maiores ainda.

No fundo, o português que se preze quer conhecer a História do País porque sabe que é ele que a continua e, ao agir com plena noção deste propósito, representa os seus antepassados

no tempo presente. Esta lógica de representação intertemporal não é obstaculizada pela existência de portugueses naturalizados — pois, se um estrangeiro se torna português, pode dizer-se que todos os portugueses que viveram anteriormente se tornam, colectivamente, os seus antepassados espirituais, em cujos feitos aquele também se inspira do mesmo modo, tal como se fosse nacional de origem, sem distinção.

 

2 – Ser português é ler os clássicos

Por algum motivo é obrigatório nas escolas o estudo da literatura clássica portuguesa; e por algum motivo se assinala o Dia de Portugal no dia do falecimento de Camões. Com efeito, a nossa literatura é uma componente importante daquilo que, ao longo dos últimos séculos, tem vindo a definir a Nação e a unir os portugueses em torno de um imaginário comum. Não se compreende tão bem Portugal sem se conhecer Os Lusíadas; não se compreende tão bem o arrojo e a intrepidez dos descobridores sem se saber quem foram o Velho do Restelo e o Adamastor; e não se compreende tão bem o futuro reservado a Portugal sem se ter noção do conceito do Quinto Império.

Estas verdades — que, infelizmente, a tantos portugueses escapam — foram bem compreendidas, curiosamente, até pelo Presidente norte-americano Ronald Reagan, que, a 09 de Maio de 1985, em sede de sessão solene na Assembleia da República, entendeu que não podia discursar sobre Portugal sem apresentar uma conhecidíssima e espectacular citação de Camões:

Deste modo, a velha e gloriosa herança do vosso país cria um elo distante mas estreito entre os nossos países e enche qualquer americano que aqui se desloque de humilde gratidão e admiração por todos os feitos do vosso povo. Embora não esteja certo de compreendermos todas as alusões à mitologia greco-romana, sei que a maioria dos americanos — e não poucos luso-americanos — partilharia o sentimento do vosso poema épico Os Lusíadas:


«Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre lusitano […]»[2]

 

3 – Ser português é ser audaz

Três vezes do leme as mãos ergueu,

Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»[3]


Não pode deixar-se de admirar a bravura dos navegadores portugueses: num tempo em que o conhecimento científico não se comparava ao de hoje, enfrentaram os perigos dos oceanos e arriscaram a própria vida para conquistar territórios, conhecer o Mundo e celebrizar a Nação.

Nem sempre permitimos que esta audácia nos inspire do mesmo modo: sempre que nos surgem contratempos e tormentas na vida, podíamos recordar-nos do exemplo dos nossos antepassados para não desanimar, ousar e rumar a quaisquer grandes conquistas que se nos apresentem. Ora, a História sugere-nos que, ainda que o não saibamos, a bravura é uma característica verdadeiramente portuguesa!

 

4 – Ser português é ser acolhedor

Uma das mais interessantes características tipicamente portuguesas é, provavelmente, a hospitalidade. Costuma dizer-se que os portugueses são particularmente acolhedores, nomeadamente aos estrangeiros, e que se dispõem sempre a ajudar quem precisa.

É uma virtude que talvez não tenha justificação histórica imediatamente óbvia, mas que traz à memória a vida de Aristides de Sousa Mendes, um dos portugueses que mais se destacou na História por razões humanitárias. Personagem tantas vezes olvidada, poderá dizer-se que representou o arquétipo da hospitalidade, quando desafiou as ordens de Salazar e decidiu conceder vistos de entrada em Portugal a milhares de judeus perseguidos por Hitler, salvando-lhes a vida. Talvez tenha sido devido à memória dele, presente como inspiração no subconsciente colectivo, que os portugueses se tornaram conhecidos como um dos povos mais acolhedores da Europa!

 

5 – Ser português é procurar conhecer o País

O português que tenha prazer em sê-lo identifica-se com o País na sua totalidade: esteja em que região estiver, sente-se sempre em casa; ainda que visite o local pela primeira vez, sente o conforto de estar na sua terra, de conviver com o seu povo, de conversar na sua língua, de ouvir os seus fados, de comer a sua gastronomia, de beber os seus vinhos e de saber que está sempre «perto» de casa.

Por este motivo, o português que se preze, não obstante poder apreciar também outros países, gosta particularmente de fazer turismo em Portugal. E, quando pode fazê-lo, contempla a formosura do País, sabendo que está sempre em casa: quer esteja perante as águas do Douro, o património de Lisboa ou as praias do Algarve, não cessa de pensar: «Esta excelente beleza pertence ao meu País. Posso vir aqui sempre que quiser.»

 

6 – Ser português é falar de Portugal no estrangeiro

Prontos estavam todos escutando
O que o sublime Gama contaria,
Quando, depois de um pouco estar cuidando,
Alevantando o rosto, assim dizia:
«Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De minha gente a grã genealogia;
Não me mandas contar estranha história,
Mas mandas-me louvar dos meus a glória.

Que outrem possa louvar esforço alheio,
Cousa é que se costuma e se deseja;
Mas louvar os meus próprios, arreceio
Que louvor tão suspeito mal me esteja;
E, para dizer tudo, temo e creio
Que qualquer longo tempo curto seja;
Mas, pois o mandas, tudo se te deve;
Irei contra o que devo e serei breve.»[4]


Todos sabemos que há muitos estrangeiros que, talvez por estarem desactualizados cerca de 400 anos, ainda pensam que Portugal é uma província espanhola. Mas falar de Portugal no estrangeiro excede a defesa da nossa independência e a correcção aos estrangeiros que hajam feito confusão.

O português que se preze vai mais longe: narra a História de Portugal a quem a não conheça, descreve a beleza do País a quem a nunca tenha visto, exalta as qualidades da Pátria e explica por que motivo gosta tanto dela. Afinal, «cantar o peito ilustre lusitano» é isto: é dizer aos britânicos que eles podem ter tido Shakespeare, mas nós tivemos Camões, autor de uma brilhante epopeia de mais de mil estâncias a enaltecer a nossa Nação; é dizer aos noruegueses que eles podem ter espectaculares fiordes, mas nós temos um rio tão lindo que chega a ser «d’Ouro»; é dizer aos russos que eles podem ter vodka, mas nós temos vinho do Porto; é dizer aos franceses que eles podem ter tido Napoleão, que tentou invadir-nos três vezes e nunca conseguiu, mas nós tivemos o Marquês de Pombal, ministro tão notável que até reconstruiu uma capital devastada por um dos piores terramotos de que há memória; é dizer aos americanos que eles podem ter ido à Lua, mas nós atravessámos os Oceanos e circum-navegámos o Planeta com a tecnologia de há 500 anos!

 

7 – Ser português é servir a Pátria

Servir a Pátria pode parecer linguagem excessivamente militarizada, mas não o é; nem é necessário alguém ser militar para o fazer. Servir a Pátria depende de nós. Cada um de nós, na sua individualidade, possui capacidades, interesses e experiências de vida diferentes, que explicam que todos desempenhemos profissões diferentes. Mas todas, militares ou civis, são essenciais à Nação — e é errada qualquer noção de que umas pessoas sejam mais úteis do que outras, ou de que uns trabalhos sejam mais patrióticos do que outros.

A Bíblia apresenta uma analogia muito interessante para explicar de que modo são importantes todos os membros de um grupo, cada um com a sua função distinta. Apesar de originalmente religiosa, a analogia é aplicável a qualquer grupo estruturado de pessoas, podendo por isso ser legitimamente citada aqui:

Porque, também, o corpo não é um só membro, mas muitos. Se o pé disser: «Porque não sou mão, não sou do corpo»; não será, por isso, do corpo? E se a orelha disser: «Porque não sou olho, não sou do corpo»; não será, por isso, do corpo? Se todo o corpo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se todo fosse ouvido, onde estaria o olfacto? […] E o olho não pode dizer à mão: «Não tenho necessidade de ti»; nem ainda a cabeça aos pés: «Não tenho necessidade de vós». Antes, os membros que parecem ser os mais fracos são necessários.[5]

Conta-se que, no início dos anos 60, o Presidente norte-americano John Kennedy estava a visitar as instalações da NASA, quando terá reparado num funcionário de limpeza que lavava o chão. Nesse momento, abordou-o, apresentou-se e perguntou-lhe o que estava a fazer, ao que este lhe respondeu: «Estou a contribuir para levar o Homem à Lua.»

Com efeito, todos nós podemos escolher ver o nosso trabalho como um «mal necessário», que só fazemos porque «tem de ser», ou como parte de um propósito maior, que fazemos com dedicação.

 

8 – Ser português é entoar o Hino

O português sente-se orgulhoso do seu Hino Nacional, porque é uma melodia que une todos os portugueses e que recorda Portugal em todo o Mundo, onde quer que se faça ouvir.

Quando entoamos «A Portuguesa», identificamo-nos com todos os portugueses que nos antecederam: evocamos os nossos «egrégios avós», declaramo-nos «heróis do mar», e sentimos o apelo, que procede das «brumas da memória», para que, como sucedeu no passado, ergamos de novo «o esplendor de Portugal». É deste modo que nos identificamos com a letra. Melodicamente, sentimo-nos extasiados com a sonoridade triunfante do Hino, a qual se conjuga com a letra para criar um cântico de exaltação da Nação; a melodia transita para uma tonalidade menor a meio da estrofe, instando-nos a uma reflexão nostálgica sobre a nossa História e tornando-o um dos poucos hinos nacionais de riqueza melódica reforçada por coexistir uma tonalidade maior com uma menor; e, no estribilho, regressa à maior, para apelar ao povo para que defenda a Nação.

É esta a mensagem do Hino: a memória do passado e a defesa de Portugal no futuro.

 

9 – Ser português é erguer a Bandeira

O português olha para a Bandeira Nacional e identifica-se com ela.

A Bandeira realça a unicidade de Portugal. Não é como a maior parte das outras bandeiras, cujos desenhos são tão pobres que não passam de duas ou três faixas ou cruzes de cores diferentes. Pelo contrário, a nossa Bandeira, em complexidade gráfica, é uma das que mais se destaca no mundo pela quantidade de símbolos que possui.

A Bandeira recorda-nos a História de Portugal. De dentro para fora, parece narrá-la cronologicamente, em quatro momentos: 1) a parte interior branca do escudo remete-nos para o Milagre de Ourique, segundo o qual a vitória de D. Afonso Henriques contra os mouros em Ourique, em 1139, se terá seguido a uma aparição de Jesus, em memória da qual o Rei terá decidido incluir no seu escudo cinco quinas, cada qual com cinco besantes, representando as cinco chagas de Cristo e dispostas em forma de cruz; 2) a faixa exterior vermelha contém castelos, em número simbólico de sete, representando as conquistas de diversas terras dominadas pelos mouros durante as décadas seguintes; 3) a esfera armilar, instrumento de navegação fundamental à orientação espacial, recorda-nos os Descobrimentos, o momento mais épico da nossa História; e 4) finalmente, as cores verde e vermelha — o vermelho para simbolizar o sangue derramado pelos que morreram pela Nação, e o verde enquanto cor universal da esperança — assinalam a revolução republicana, que consagrou a República Portuguesa como hoje a conhecemos.

 

10 – Ser português é gostar de Portugal

Recordada a História, analisada a literatura e explorada a beleza de Portugal, concluímos que ser português é mais do que possuir uma nacionalidade: é gostar de Portugal. Ser português é amar este espectacular País que podemos, com prazer, dizer que é nosso. E é insistir que, ainda que algum dia no-lo seja proibido — como proibido foi o amor que Pedro nutria por Inês, e Inês por Pedro —, o nosso amor por Portugal nunca cessou e jamais cessará.

 

Simão Pedro Guedes

Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"

ENSAIO

Edição 2021

 

 

 

NOTAS:

[1] PESSOA, Fernando. A Mensagem. «Mar Português», segunda estância.

[2] Discurso de Ronald Reagan na Assembleia da República, segundo tradução constante do Diário da Assembleia da República, III Legislatura, Sessão Legislativa 2, N.º 79 (publicado a 10 de Maio de 1985), p. 3049 (VIDE https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/03/02/079/1985-05-09/3049)

[3] PESSOA, Fernando. A Mensagem. «O Mostrengo», terceira estância.

[4] CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Canto III, estâncias 3–4.

[5] Bíblia Sagrada. Primeira Epístola do Apóstolo Paulo aos Coríntios, capítulo 12, versículos 14–17,21–22. Versão Almeida Revista e Corrigida.

 



 

 

 

 

 

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