Todo o português é intemporal


O que é ser português? É sem dúvida ser-se um ser intemporal. Também responsável e natural. Assim resumo e suporto a minha resposta sob esses três alicerces. O que é ser português? Descendo as escadas do meu prédio e fazendo a pergunta ao homem do café, o tipo que ferve as castanheiras, ao sem-abrigo que mija nas ruas do meu bairro ou ao deputado que sempre se vê mentindo na televisão, terei com certeza respostas diversas, mais respostas diferentes do que o número de vezes que fiz tal pergunta. Mas fica já aqui, em apenas poucas frases, tanto do que é ser português. Páro e penso. Um português não é assim tão pessimista. É verdade que gosto de reclamar, embora adore o café e o homem que o gere, coitado, trata-me sempre tão bem, barrigudo e alegre, de bochechas vermelhas e bigode. O sem-abrigo irrita-me, mas não me vou chatear muito, está pior do que eu, não sei se porque o quer ou porque o filho da - perdão - o deputado o põe lá, consequência das suas promessas vazias que latejam à minha janela, comidas pelo vento. Misturada com esse vento uma leve doçura me chega ao ouvido e, já de volta ao meu apartamento, abro a janela para escutar melhor o encanto da minha cidade. E do outro lado da rua vejo quem me atrai, uma menina à janela, cabelos à lua e penso para mim “isto é ser-se português: sentir, sentindo com pouco sentido”.

Ao ser uma pergunta deixa-se muito em aberto, mas sob pena de me virar francês, preciso de alicerçar-me em certos estandartes, menos óbvios talvez, para lá de somente falar o bom português ou cozinhar bom bacalhau.

Todo o português é intemporal. Desde Afonso Henriques que vivo, avançando nos anos, cada geração nova traz o seu feito ao de cima, perdurando numa memória compartilhada. E que mais? Descobrimentos pois! Quantos de nós não vive a travessia à Índia por contos e recontos, de peito cheio viajamos ainda hoje no século XXI com a mão no coração, o mesmo coração que bombardeia o sangue de séculos derramado já nos quatro cantos deste mundo pelas aventuras e desventuras de quem seguiu em frente ao Desconhecido. À bolina, como bem aprendi eu em miúdo. Embora haja sítios no mundo onde já destruíram a nossa presença quase por completo, restando mesmo só uma cruz ou uma lápide, se eu a vejo, deleito-me (não vou mentir) em saber que a minha casa se estende até ali. “A casa onde cresci é grande” penso para mim.

Mas quem é que quer viver para sempre no passado? Eu não. Há em nós, terá que haver, uma certa responsabilidade de reinventar o que é ser-se português. Quem é que pensa ser a repetição do que já foi e houve? “Prefiro escorregar nos becos lamacentos, redemoinhar aos ventos feito farrapos, arrastar os pés sangrentos” a ser mais um imitador. Se vim ao mundo, foi somente para desflorar florestas virgens e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!” Se ainda vivo e se ainda fui a tempo de nascer no berço de um país como Portugal então dêem-me também a oportunidade de reinventar o tradicional. De dar-lhe mais uma nova definição. Dificultar a resposta a esta mesma pergunta de quem vier posteriormente a querer respondê-la. Na vida, devíamos todos querer responder a esta pergunta.

E finalmente, a sensação de que ser-se de fibra portuguesa é natural. Pois, pudera, nasci assim! Mas é impossível visualizar-me de outra forma. Quem nasce português sabe que tem muita boa vida na identidade deste ser português. Isso não o podia negar. Pode ser do clima, ou das relações familiares próximas. Mas há também muita força e garra para avançar. O problema é sacudir os portugueses para tomarem gosto disso. “Espera aí que já vou”. “Já vou”, “Quase”, palavras irritantemente portuguesas. Gosta-se de esperar até à última. Mas até temos ido.

Poderei estar a ser optimista demais. Como diziam quando estava eu no café, Ser-se bom português é gostar de futebol, de Fátima e do Salazar! Se calhar seja só isso.

Ou se calhar só não. Dependerá da responsabilidade, da disponibilidade dum qualquer ser humano que se deu ao acaso de nascer em terras bordadas por D. Afonso, um povo que a cada geração os tenta limar. E claro está, pelo único ingrediente que nos reluz a luz do sol que ilumina o nosso mundo : o mar salgado que nos pertence. Olhemos para os factos antes de olhar ao mar. Uma das últimas vezes que a Humanidade se primou por enaltecer o seu estado de consciência (nalgumas coisas só, já se sabe com que caneta se escreve a História) foi no Renascimento. E não é que essa mesma temporada corresponde também a um dos nossos melhores períodos históricos? Portugal viu-se como actor principal num salto bem maior que um simples passo; foi uma bela remada. Em terras desconhecidas que o português se encontra a si mesmo. Quereremos porventura saber o que é ser Português? Será aí.

O mar tem destas coisas, esse mar salgado, como porta que nos abriu ao Desconhecido e sob suas ondas enaltecemos a Nacionalidade para que de sua definição também fizessem parte adjectivos como a Glória. Agora olhando para o seu espelho movediço pedimo-lo que nos abrace de novo, que mergulhemos novamente dentro de seu manto misterioso repleto de musas que vivem no subsolo, onde caberá a cada português encaminhar-se na recarga ao Renascimento, nascer de novo, independentemente da época diga-se, porque a única que nos interessa é esta: Agora.

Então, é isto que é ser-se Português?





Pedro Montenegro

Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"

ENSAIO

Edição 2021

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