“O QUE É SER PORTUGUÊS?” - José António Ambrósio

          – Ser português é amar Portugal. Ora essa!! Claro que ao sintetismo do asserto com ressonância agostiniana há que acrescentar algo. Desde logo, saber o que é o amor, donde provém, como se manifesta, se identifica, se fundamenta, para onde nos leva; ao mesmo tempo e ipso facto fazer as mesmas diligências no que a Portugal tange. Amor é energia, uma energia de absolutérrima perfeição, cósmica, que se manifesta em/no agir, se identifica nas nossas mundividência e mundivivência, também nos nossos rosto, compleição e linguagem corporal se o que nos observa for dotado de uma olímpica perspicácia. Ortega Y Gasset disse, em Estúdios Sobre el Amor, que é muito fácil saber quando o outro é nosso amigo: “basta sentir as calorias sentimentais que emite”. Mutatis mutandis… O Amor leva-nos para o Divino. Aliás são sinónimos. A equipolência desta absolutérrima perfeição cósmica é o Sagrado, Deus, a Infinita Inteligência do Universo (favor não confundir com fórmula maçónica porque aqui é de metafísica que se trata). Há que lembrar essa figura áugica da espiritualidade da passada centúria que foi Teilhard de Chardin quando referia, se referia, à “espiritualidade da matéria”, a “tudo o que sobe converge” e a “ esta magnificência que eu trago nos meus olhos” – esta última asserção feita no deserto chinês de Gobi!! Estes três assertos são, simultaneamente, programas de interpretação e acção para um gregarismo, uma comunidade, uma Nação, um Estado, uma História destas duas entidades. De outro modo: são ditames, vozes interiores. Desçamos, porém, à terra: o que – constantemente, em regra – se nos depara é a humana incompletude, a falibilidade da humana condição: nossa e dos demais. Ora, após o que dito fica, resulta óbvio que, para amar, é mister preparação – a fortiori porque a magnitude de todas as questões aduzidas remete  para o Transcendente.  Uma preparação que deve ser ampla, profunda, elevada … De outro modo: dado que “os assuntos humanos sempre se encontraram num estado deplorável” (Carlo Cipolla), ângulo que incontáveis autores corroboram, só há uma postura – a do “amor vigilante”. (A expressão pertence a quem foi meu professor de Filosofia Antiga que, como poeta, insigne e não fácil, assinava Victor Matos e Sá).       

          O cristalino critério de análise, acção e prospecção é, pois, o amor vigilante (por economia doravante sem aspas).

– Ser português é amar Portugal. Ora essa!! (Como se intui as iniciais e precedentes palavras são puramente retóricas…). E amar porquê? – Desde logo porque nos amamos a nós mesmos. E amamo-nos a nós próprios porque nos temos na mais alta estima e esse é um programa vital, incoercível, “fatal” (com aspas, claro). O termo-nos na mais alta estima é um estado e um processo. Estado de/da consciência; e processo, agónico, para não o perdermos. A incompletude e o devir humanos têm-se como um pressuposto. As prescrições religiosas aí estão a atestá-lo desde as mais remotíssimas eras e as mais díspares latitudes e longitudes – tal como a ascese e a parénese em tempos bem posteriores. Lembro o nosso filósofo-poeta, Camões: “torna-se o amador na coisa amada”. É uma questão centrada na pessoa, na sua rectidão interior, e, para o percebermos tão cabalmente quanto possível, é instante declarar que, como disse “o mais sábio de todos os homens”, Sócrates, “ ser sábio é o conhecimento de si mesmo” – Sócrates, que, com impertérrito estoicismo, aceitou a condenação à morte ante a lancinante impotência de familiares, discípulos, amigos e circunstantes. A inseparabilidade da sua própria comunidade – para a paz e a guerra, tudo absolutamente – é um dos mais impressionantes legados do daimon (voz interior) do que “trouxe a Filosofia do Céu à Terra”. Aliás, para tudo o que acaba de ler-se impõe-se que diga o que segue – visceralmente. Quando, em 1961, ponderadamente, meu Pai me perguntou: “José António, queres ir à guerra?”, pronta e convictamente respondi-lhe:   “Quero”. A minha existência estava à disposição da Pátria. Ocioso declarar que uma Nação inteira me acompanhou – e tão-só isso me bastaria para deixar claro, eloquente, o meu Amor por/a Portugal. Dulce et decorum est pró Pátria mori. Quando a verdadeira História um dia aparecer não haverá mais razão de cizânia em Portugal. Acrescente-se que fui louvado pelos Comandos de Batalhão e de Sector pela minha actividade operacional e que é da mais elementar gratidão mencionar o papel dessa deusa que foi – e é – a minha madrinha de guerra.

 Sou eu, nada mais posso ser senão eu, mas, tal como em Sócrates, há em nós, ademais, como dito fica, duas dimensões que se avantajam e equivalem: a estrita dimensão pessoal e a gregária. Somos uma radical unicidade, o nosso ponto de partida é o Cosmos, Deus, a Infinita Inteligência do Universo, o sopro cósmico, CHI (s.f. f. pronuncie tchi), como nos identifica o Feng Shui da muito ancestral cultura china. Eu só sou eu se me souber e, para tal, tenho que me questionar, procurar. Quem são/foram os meus pais (pai e/ou mãe)? Os seus familiares donde procedem? Que é a terra que os viu nascer? Que valores (ou ausência, enviesamento deles) lhes foram incutidos (religiosos, culturais, intelectuais, laborais, sociais, afectivos, éticos, estéticos…)? Tenho a minha árvore genealógica só desde 1822, porque as tropas imperialistas napoleónicas, na Guarda, só não destruíram a Sé Catedral – que vandalizaram e saquearam – por lhes ser impossível. Outra fonte diz-me que tenho antepassados cátaros. É meu dever, minha obrigação, acentuar a dimensão religiosa. Religare, do Latim, significa ligar, atar, unir A minha carta astral é clara: o meu mundo é o da Historia, Filosofia, Arte, Literatura… Ou seja: o ângulo a partir do qual me situo para contemplar e agir sobre a realidade é peculiar, idiossincrásico. O conhecimento de si mesmo determina uma permanente dedicação a si próprio e…aos outros, assim se chegando à Comunidade. Tal como a comunidade humana é originariamente, digamos, dual (só homem e mulher procriam) também o ser humano é inseparável de uma participação em comum. Ter sempre bem presente o fanal da condição socrática.

Destarte se chega à História como instrumento de conhecimento. Após os primeiros vagidos balbucios e chilreios, as primeiras importantes perguntas. Uma regra que me parece inexpugnável para, no seu âmbito, nos situarmos foi enunciada por J. Flach: “As linhagens são as grandes criadoras de nacionalidades”. A nobreza portucalense de Entre Douro e Minho separou-se da monarquia asturo-leonesa; e em breve iria precisar do contributo dos que, na História, ficaram designados por “cruzados”. O combate estava religiosamente fundamentado e urgia lutar contra a moirama. Era uma luta crucial, pois o confronto era entre dois Credos. E não me alongo em dualidades… O critério de entendimento do ser humano relativamente ao Homem e à História é o da alteridade (pormo-nos na pele do outro, digamos assim), alteridade com as suas inerentes, indizíveis, humildade e persistência – ao nível de “quem não deve não teme” – e nos antípodas da aberrante violência da projecção. E a Monarquia portuguesa surgiu breve. Reconhecida a sua independência (Manifestis probatum est…) perante as outras realidades políticas peninsulares e da Cristandade pela Santa Sé (vivia-se na respublica christsana), o novel reino prossegue as directrizes de trás vindas: propagação da fé, expansão territorial e o mar como via para o mais além. Já no reinado de “ O Conquistador” embarcações portuguesas iam a França, Flandres e ilhas britânicas, acentue-se. A luta contra os sarracenos continuou até 1249, a pesca, actividades ligadas ao mar e viagens marítimas prosseguiram e, com o Tratado de Alcanizes (12-IX-1297), o Reino alcandorou-se às suas actuais fronteiras (a Espanha que devolva Olivença quanto antes). Isto é: em pouco mais de um século uma fulgurante ascensão – ao que acresce a fundação dos Estudos Gerais (Universidade). Ou seja: o alargamento do seu território, a propagação da fé, os tratos comerciais – tudo devidamente aceite, porque fundamentado no Sagrado tal como então era entendido pela Santa Sé. Fundamentado pelo Sagrado e, também, pela terra, mar e homens de então. Estava constituída e afirmada uma identidade (ocioso declarar que na luta contra os mouros, nos territórios a oriente, a responsabilidade cabia a outra potestade). A existência de um país – uma Nação – alcandorara-se ao nível do inexpugnável ético-jurídico e ético-político. O “Somos e seremos o que fomos” de Vergílio Ferreira aplica-se aqui com toda a propriedade, qual árvore de fundas raízes, tronco e copa, altaneiros, frondosos e, não obstante todas as vicissitudes que os tempos iriam trazer, inexpugnáveis. Portugal sofreu, salvo erro, 18 invasões incluindo três vindas de França, mas, no fundo, esta concreção espiritual, manteve-se inexpugnável.

…Sobre o cativeiro oliventino imperativo é dizer algo. Em 12-IX-1997, nas cerimónias comemorativas dos setecentos anos do Tratado de Alcanizes, em Santa Maria de Aguiar, ali mesmo ao lado de Castelo Rodrigo (actual concelho de Figueira de Castelo Rodrigo), Don Federico Trillo-Figueroa – oriundo de uma família aristocrática e franquista – Ministro dos Assuntos Exteriores de Espanha, portanto representando o seu Estado, declarou que, “na questão de Olivença a Espanha não tem defesa”, Do Estado português acompanhavam-no António de Almeida Santos e António Vitorino. Os circunstantes eram historiadores dos dois países, autoridades várias, próceres e, pelo menos, um anónimo, eu, que vestia camiseta – e não podia deixar de estar presente. No total largas dezenas de pessoas, calculo. Acabado de ouvir tão conspícua declaração disparei na direcção de don Federico e agradeci-lhe em castelhano: Muchisimas graciais por sus palabras Don Federico”. Almeida Santos comentou: “A borbulha de Olivença”. De todos os presentes ninguém mais se manifestou. Como me competia escrevi isto de seguida no semanário Jornal de Coimbra, onde então colaborava, e, há menos de um década, n’ A GUARDA, jornal da cidade e da Diocese. (A declaração do ministro espanhol foi depois repetida pelo Comandante Brandão Ferreira no Boletim do Grupo dos Amigos de Olivença e n’ OBSERVADOR). Refira-se que a petrolífera espanhola Repsol, há anos, patrocinou um concurso para se saber qual o mais bonito pueblo de Espanha, ou algo parecido. O vencedor do concurso foi Olivença, a vila alentejana … A vigilância do amor não postula apenas pôr a vida à disposição da Pátria, sim, também, agir sempre que qualquer situação o requeira. Proteger, valer, defender…  – Tudo. Res non verba.

Enquanto professor convidado na Academia Sénior da minha cidade, onde leccionei História da Arte, organizei uma viagem de estudo à vila alentejana. Foram, talvez, 50 pessoas. O nosso cicerone em Olivença foi Joaquín Fuentes Becerra. (Por imposição de Franco, a fim de apagar o portuguesismo, os nomes lusos tiveram que ser substituídos por espanhóis). Pela acrisolada afectuosidade do Joaquín – ao mesmo tempo que pela sua qualidade profissional – e, outrossim, porque, da comitiva, excepto eu, ninguém, salvo erro, já tinha ido a Olivença, o resultado da viagem foi um êxito. Com efeito, dos alunos, um ou outro ignoravam a questão – mas houve manifestações de verdadeiramente espantada emoção quando se lhes deparou a catedral de Santa Maria Madalena, a Torre de D. Dinis, a igreja de Santa Maria construída no tempo de Filipe I, as edificações de Carvalho e Melo (Pombal)… Como supra dito, o amor a Portugal afirma-se em actos. O nosso presente ao Joaquín – que foi também um dos fundadores da associação cultural Além Guadiana – foi uma taça de cristal. Acabados de apresentar, enchi a tacinha de  terra oliventina, beijei-a e, frente a todos, dei-a ao Joaquín. Depois disse-me: “os meus antepassados do século XVI vêm das Freixedas” (localidade a c. 30 quilómetros da Guarda na estrada para Pinhel). Respondi-lhe: “Na Guarda tem uma casa às ordens com todo o gosto”. Não admira, assim, que o topónimo Olivença esteja espalhado pelo mundo onde bandeira portuguesa tenha estado hasteada e que haja tantas cidades e vilas que a homenageiam na sua toponímia.

 

José António Ambrósio

Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"

ENSAIO

Edição 2021

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