“O que é ser português?” - José António Ribeiro Neto

 Introdução  

 Olá!

Meu nome é José Antonio. Sou filho e neto de portugueses. Nasci e cresci no Brasil, em uma quinta do meu avô paterno, onde por longos anos convivi com minha numerosa família portuguesa. Meus avós maternos viviam na cidade. Fomos morar próximo a eles após longos anos vivendo na quinta.

 

Comparando as famílias

Assim, vivendo ora na quinta, ora na cidade, me permitiram estabelecer comparações entre a minha família portuguesa e as demais que imigraram para o Brasil como as italianas, japonesas e alemãs.

Na quinta estávamos mais isolados, mas na cidade, na escola, pude avaliar os costumes das outras etnias, que me proporcionou um melhor entendimento da vida portuguesa.

 

Visitando Portugal

A minha primeira visita a Portugal foi emocionante, e pude sentir no coração e na alma aquilo que distante já me era tão real, a vida de ser um descendente de português.

Em Lisboa comparei a vida portuguesa com a vida brasileira, seja no falar, comer, conversar, vestir, abordar, amar e relacionar. Percebi o quanto daquilo me era familiar apesar de ter vivido até então apenas no Brasil.

 

Ser português é algo que se aprende ao longo do tempo.

Desde cedo, percebi que minha família era diferenciada, pois corria em nós o sangue português, sangue da união e cooperação, da família, da identidade cultural, da paz e harmonia.

Portugueses são guerreiros, amantes da vida, trabalhadores, lutadores para dar aos filhos o melhor, como sempre fizeram meus avós e pais.

É preciso vivência diária com a família, avós, pais, irmãos, tios e primos. No saborear da comida portuguesa, estar na roda das conversas, ouvir as piadas engraçadas de seus tios, passar os natais e anos novos rindo das histórias contadas pelos chefes das famílias, ouvir primos a tentar seduzir os mais jovens da família com suas cantorias.

 

Ser português é algo que se sente ao longo do tempo

Algo que está no coração, alma e espírito. No modo de ser, no enfrentar da vida. Nas origens, aprendizados vindos dos avós, pais e tios.

Nos ensinamentos traduzidos pela cultura portuguesa e na forma de ver a vida.

Ser português é uma soma de vidas, conhecimentos, ensinamentos passados de pais para filhos, de avós para netos, ao longo das gerações, transformando a vida das jovens em sua busca pela identidade, a primeira de todas que é a identidade portuguesa.

Os itens a seguir melhor respondem esta pergunta.

1 - Ser português é aprender com os avós e família;

2 - Ser português é expressar a sua alma em histórias e frases;

3 - Ser português é ter autocrítica, resiliência e coragem;

4 - Ser português é saber despertar, colaborar, orientar e reinventar-se;

5 - Ser português é estar presente na vida dos filhos e das novas gerações.

 

1 - Ser português é aprender com os avós e sua família

Meus avós portugueses tiveram impacto profundo em minha formação. Cresci ouvindo seus conselhos, histórias e frases moldadas a partir de suas experiências de vida.

Eles enfrentaram a gripe Espanhola no início do século passado, a primeira e segunda guerras mundiais, crises globais como a quebra da bolsa de valores de Nova York em 1929, falta de empregos, dificuldades para alimentar a família, imigração para outro país sobrevivendo em condições precárias.

Apesar desta luta desigual, mantiveram a família unida, preparando o terreno para as futuras gerações.

Aprendendo a ser português com meus avós paternos

Minha avó faleceu antes do meu nascimento, mas sua foto na parede da casa de madeira da quinta, me acompanha até hoje como se a tivesse conhecido e convivido com ela em vida.

Avó Maria, avô José Antonio e os filhos Elvira e Manoel (créditos autor)(1)


Meu avô trazia de Portugal o gosto pela literatura, cultura e conhecimento do mundo. Foi militar em Portugal, mas se tornou agricultor no Brasil. Era respeitoso com seus parceiros, meeiros, caseiros e vizinhos.

Trazia dentro de si o amor por Portugal e Figueiró dos Vinhos(2), freguesia portuguesa do distrito de Leiria na província da Beira Litoral.

Com ele aprendi sobre a terra, como cultivar, tratar dos animais, respeitar o tempo e o clima, ter paciência para ver a roça crescer e calma para caminhar.

Na frente da casa onde morávamos, ele mantinha uma parreira de uvas. Suas podas eram orgulhosamente dadas aos amigos. Acho eu que ele conversava com ela todos os dias para matar as saudades da terra além-mar e da minha avó que partiu muito cedo.

Avô José Antonio ao centro com os irmãos Augusto e Serafim (créditos autor) (3)


Suas histórias de Portugal eram contadas à noite, na varanda da casa, fumando cigarro de palha, olhando divertidamente para o céu estrelado da via Láctea que banhava suavemente de luz a nossa quinta.

Me lembro do seu andar lento pelas trilhas da quinta. Um rito ao pensar, ao relacionamento com a natureza, da vida portuguesa de onde viera.

Eu adorava correr por ali levando algo aos patrícios portugueses, de um lado os Rodrigues, do outro os Morgados.

A quinta estava localizada a 7 Km da cidade de Duartina-SP(4), de onde podíamos ver o sol nascer e se por, acompanhar a lua em suas fases, a via Láctea estupenda nos meses de inverno, chuva de meteoros, chuva abundante de água banhando as plantações, pastos e animais.

 

Aprendendo a ser português com meu avô

Meu avô paterno era muito culto, educado e gentil.

Aprendi com ele a ser agricultor e um bom leitor. Ele era fã de Eça de Queiroz e além dos livros pessoais que havia trazido de Portugal, assinava a pequena revista Seleções da Reader’s Digest(5) traduzida para o português.

Sentado no chão de madeira de sua casa, eu costumava ler os livros de Eça, folhear e ler as revistas.

 

Já terminaste de ler “O Mandarim”? dizia ele me olhando nos olhos.

Além de ter nascido e vivido por longos anos na quinta, minhas férias e visitas constantes eram preenchidas com a presença de meus amigos de infância, primos, tios, tias, meeiros, caseiros, vizinhos e amigos da região.

Uma comunidade portuguesa de forte sotaque que mergulhava nos costumes, comidas, frases, piadas, sorrisos, e músicas portuguesas.

Caça, jogos de bocha, montar a cavalo, balanços no cedro, futebol, buscar água na mina, ajudar na limpeza da casa, preparação das festas dos santos e trabalho duro compensavam o aprendizado.

Do lado da parreira de uvas tínhamos um cedro enorme, com um balanço de cabo de aço, duas mangueiras fornecendo sombra ao nosso campo de bocha e um coqueiro alto que atraia pássaros.

Na frente da casa havia um gramado imenso que servia de estacionamento, barracas de festas, campo de futebol, montagem de animais, disputas de corridas em uma trilha que conduzia até a tulha de café perseguidos pelos cachorros que vibravam nestas idas e vindas.

Minha tia Leonor filha mais nova, testemunhava tudo, cuidando de nós com imenso carinho, cozinhando pratos portugueses, puxando nossa orelha quando preciso, nos alegrando com suas atitudes positivas e carismáticas.

 

“Crescer observando e convivendo com meu avô paterno, me mostrou a importância de ser português, ser culto, ter calma e paciência, saber viver e compartilhar.”

Aprendendo a ser português com meus avós maternos

Eles vieram da freguesia de Penhas Juntas, concelho de Vinhais, distrito de Bragança, província de Trás-os-Montes e Douro, norte de Portugal.

Meu avô José Elias era a calma em pessoa, tranquilo e sossegado.

Por trás desta calma estava um estrategista e um grande empreendedor. Ele tinha um empório e um hotel. Um negócio alimentando o outro, ideias que aprendi para o futuro.

Ele me dava muita atenção. Depois das aulas, eu passava no empório, para comer bolachas e doces portugueses. Naquela época vinham em latas e eram vendidos por quilo.

Quando não apareciam clientes, ele me contava histórias e façanhas de quando morava em Portugal, discorrendo sobre as guerras na Europa, sua ida para trabalhar na França, encontro com a minha avó Leopoldina que desafiou o pai para se casar com ele, na época um ato raro.

Me contava como eram as terras por lá, suas casas pequenas de pedras, os poucos espaços para plantar no solo pedregoso, inverno rigoroso e a vida difícil que tinham.

Eu sempre o considerei um romântico pois percebia nele um encanto pela vida, pelos filhos e principalmente pela minha avó Leopoldina, uma portuguesa baixinha de personalidade forte e espírito vencedor que ele nem arriscava contrariar.


Meus avós maternos e filhos (créditos autor(6)). Sentados: Meu avô José Elias e minha avó Leopoldina. De pé ao fundo meus tios: Cândida, Lino e minha mãe Narcisa.
De pé na frente os meus tios: José, João, Félix, Wilson e Milton 


Aprendendo a ser português com minha avó Leopoldina

Ela nos levava à igreja todos os domingos, íamos em fila indiana com minhas irmãs e primos, no que sempre obedeci seguindo as regras.

Quando ela vinha em direção da minha casa, eu a observava e sentia um imenso orgulho, pois demostrava estar decidida a chegar e resolver os problemas quaisquer que fossem.

Aos domingos ela esperava os filhos e netos para o almoço.

Lá estávamos nós em uma grande mesa, a comer sardinhas, bacalhau com batatas, cebolas, pimentão e tomates. E meu avô a servir um bom vinho português de garrafão.

Ninguém reclamava da felicidade de ser português.

 

“Ser Português, é ter convivido com sua família, aprendido com ela as dificuldades enfrentadas na vida. Manter estas lembranças para desenvolvê-las futuramente com seus filhos e netos, mantendo assim a chama viva da cultura e etnia portuguesa”.

 

2 - Ser Português é expressar a sua alma em histórias e frases

Como neto e filho de portugueses, cresci ouvindo histórias dos meus avós.

Eram histórias de uma sinceridade ímpar. Histórias das guerras, viagens pela Europa, imigração para o Brasil, escolha das esposas, convicções religiosas, políticas e esportivas, mágoas e alegrias.

Histórias como as da minha avó Leopoldina, que nos levava à missa aos domingos, quando se confessava repetindo sempre o mesmo pecado de que havia pegado um dinheirinho do meu avô.

Ela recebia sempre a absolvição do padre que cansado da mesma história um dia sentenciou que “pegar dinheirinho escondidinho do marido não era mais pecado”.

Meus avós me transmitiram como ninguém a maneira de ser português, sintetizando situações difíceis em frases verdadeiras e significativas, encaminhando uma solução em segundos.

 

Quando a coisa apertava podia ouvir frases como “raios que te partam!” ou “raios me partam!” que na pronúncia soava como “ralhos que te partam!”.

Estas histórias e frases originais fazem parte da minha vida portuguesa, que guardo como relíquias que representam as saudades e o amor por eles.

Elas surgem em minha mente inesperadamente quando estou envolvido em alguma situação de vida na qual se encaixam.

Algumas destas frases, publiquei neste ensaio usando a expressão “como dizia meu avô português” pois me lembram este período da vida que pude conviver com eles.

“Ser Português é expressar a sua alma em histórias e frases, de geração em geração, transmitindo os dons de agir, pensar, realizar, amar, sofrer e desenvolver a vida de forma honesta e com muito trabalho.”

 3 - Ser português é ter autocrítica, resiliência e coragem

Baseado no que aprendi com meus avós portugueses, percebi que eles enfrentavam a vida utilizando três princípios básicos:

a) Autocrítica

b) Resiliência

c) Coragem

 a) Tenha autocrítica

Ser português é ter autocrítica.

“Tu não és melhor do que os outros” como dizia meu avô português.

No lugar de criticar o mundo, critique a si mesmo.

Olhe para dentro de você. Fala demais? Promete mais do que cumpre? Não respeita os diferentes? Não sabe conversar com os filhos? Atropela os humildes? Se julga superior?

Isso não é definitivamente ser português. Não aprendemos isso com nossos avós e pais. Não é da nossa cultura portuguesa.

“Ser Português é ter autocrítica. Buscar o melhor para si e para os outros.”

 b) Seja resiliente

Ser português e ser resiliente.

Resiliência é uma palavra pouco usada pelos meus avós portugueses. Mas sem dúvida eles utilizam muito a palavra paciência.

“Tenhas paciência meu rapaz” como dizia meu avô português.

Resiliência significa uma pessoa ser flexível, ter a capacidade de superar obstáculos.

Uma forma apropriada de resiliência é considerar o argumento de que as nossas atitudes podem resultar em atos bons ou ruins.

Para entender o resultado dos seus atos é preciso ser resiliente. Ter muita calma para lidar com os problemas superando as adversidades.

“Ninguém é mais resiliente que o português, enfrentando a vida de frente, tendo calma e paciência, com as dificuldades que surgem.”

 c) Tenha coragem e vença o medo

Se és português sabes o que é ser corajoso.

“Tenhas coragem e monte no cavalo” como dizia meu avô português.

Medo é assustador. Quebra a confiança.

Ele surge inesperadamente em várias etapas da vida.

Idosos que caem sentem medo de andar. Empresários falidos sentem medo em desenvolver novas empresas. Jogadores com contusões crônicas sentem medo de voltar a jogar. Amores perdidos se tornam barreiras para não se apaixonar novamente. Crianças inseguras tem medo de tomar decisões. E vai por aí a fora.

 

A coragem desafia o medo

A coragem surge quando enfrentamos o medo.

Quem não tem medo não é uma pessoa normal. O medo nos acompanha por toda a vida. Vai e volta diariamente.

“Vindos de Portugal, meus avós, minha mãe e irmãos cruzaram o oceano Atlântico em navios não muito seguros para os padrões de hoje. Eles tiveram coragem, mas devem ter tido momentos de muito medo.”

Várias técnicas são utilizadas para eliminar o medo, como mudar o comportamento, racionalizar o problema, realizar tarefas simples até ganhar confiança para realizar as mais complexas, respirar, relaxar, concentrar, se apegar a Deus, tentar se livrar da ansiedade, entre outras.

“Se você é português, sabe que para viver e cuidar de sua família, é preciso coragem, confiança em si mesmo, e se livrar do medo o mais rápido que puder. Ser português é ser corajoso.”

 

4 – Ser português é saber despertar, colaborar, orientar e reinventar-se

Muitas vezes na vida nos encontramos em dificuldades.

Elas chegam em momentos inoportunos, alteram nossa vida. Ficamos chocados ao perceber o quão frágeis somos.

Algumas situações podem ser resolvidas rapidamente, outras levam anos, e muitas nem sequer serão resolvidas.

Em nossa família portuguesa fomos colhidos por muitas tempestades, falecimento de minha avó, perda do irmão mais velho com câncer, perda de um jovem sobrinho, derrotas financeiras nos negócios.

É triste passar por isso. A vida portuguesa pode sofrer embates, mas sempre são superados com sabedoria e confiança.

Vivendo estes embates, aprendi como enfrentar estas situações, e como deveria orientar meus filhos com as lições aprendidas.

Somando tudo o que vi e senti, resumi o que me tornava mais português em quatro palavras: Despertar, Colaborar, Orientar e Reinventar-se.

1 - Despertar

Ser português é saber despertar o seu instinto vencedor buscando informações, orientações e conhecimentos para encontrar novos caminhos.

Deixar para trás as mágoas do passado, recomeçar e se transformar em uma pessoa melhor buscando uma vida mais produtiva e feliz.

As lições da vida nos servem de força para despertar e enfrentar as dificuldades.

2 - Colaborar

Colaborar com a família e a comunidade para enfrentar desastres que acontecem na vida sem explicação, sem tempo e hora marcados.

Na família portuguesa aprendemos a colaborar com os demais para suportar as situações complicadas. A vida pode nos desorientar, mas ao receber apoio, passamos por momentos complicados e seguimos em frente.

3 - Orientar

Se tens filhos sabes o quanto é preciso saber orientar.

Fornecer ideias e sugestões para que a pessoa se torne mais confiante para mudar o rumo, desenvolver novas metas, buscar novos caminhos na vida.

Meus avós e pais sempre me orientaram quando necessário.

“Ser português é saber orientar seus filhos, patrícios e amigos. Ser português é saber receber orientações para encontrar novos caminhos.”

4 - Reinventar-se

Muitas vezes temos de deixar de ser como éramos, e perceber que é preciso melhorar, mudar a forma de como fazer e de viver.

Ser português exige de cada de nós mudanças em certos momentos da vida para enfrentarmos as dificuldades.

“Ser português é saber rever os valores, repensar o que somos e o que queremos ser, indo de encontro ao inesperado, aquilo que sonhamos, mas ainda não realizamos.”


5- Ser português é estar presente na vida dos filhos e das novas gerações

Assim como meus pais me casei e tive filhos.

Minha esposa é professora de música e idiomas. Ela tem formação em piano clássico e um BA em literatura portuguesa e inglesa.

Minha filha é jornalista e meu filho economista.

Assim como recebi de meus avós e pais uma educação especial, orientada para princípios e valores obtidos da minha família portuguesa, procurei passar para os meus filhos também estes princípios.

Da mesma forma que meus avós fizeram comigo, meus pais se aproveitaram da convivência com meus filhos, para lhes contar histórias e façanhas de seus bisavós, deles próprios e da vida portuguesa aqui e acolá.

“Ser português é acima de tudo ser capaz de manter estas tradições, pelas histórias contadas, experiências vividas e transmitidas.”

Sem isso, acho que deixamos de ser portugueses, deixando fugir das próximas gerações, esta força humana que trazemos dentro de nós e que nos caracteriza como pessoas especiais.

Desenvolver o amor português junto aos seus filhos, encaminhá-los a uma vida futura com estes conceitos e tradições, me parece ser o correto.

Acredito que meus filhos possam levar adiante estes ensinamentos, e se orgulhar como eu me orgulho de ser português.

“Ser português é acima de tudo estar presente na vida de seus filhos e das novas gerações”.

 

 

José António Ribeiro Neto

Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"

ENSAIO

Edição 2021

 

 

 

NOTAS:

[1] Créditos autor https://bit.ly/3rXaIZn.

[2] Freguesia de Figueiró dos Vinhos - https://bit.ly/36UmUCu.

[3] Créditos autor https://bit.ly/3rXaIZn.

[4] Cidade de Duartina - https://bit.ly/3mW46Z7.

[5] Revista Seleções da Reader’s Digest - https://bit.ly/3lW5KsL.

[6]   Créditos autor http://bit.ly/2JBgkbu.



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