O que é Ser Português? - Carlos Andrade Silva
Muitas são as
questões para as quais assumimos haver uma resposta de tal forma simples e imediata que nos abstemos de
pensar na mesma e quando finalmente o fazemos
descobrimos que a tal resposta simples e imediata não existe ou, se para
alguns existe, é rapidamente posta em
causa por outros. «O que é Ser Português?» é uma destas questões.
Demonstremos a dificuldade de tal definição
assumindo como verdadeira a equação
«português = cidadão da
República Portuguesa» e comparemos a posição sobre este tema nos três textos constitucionais que mais
tempo vigoraram em Portugal: a Carta Constitucional outorgada por D. Pedro IV em 18261 e as Constituições
da República Portuguesa (CRP) de 19332
e de 19763. Na Carta Constitucional de 145 artigos outorgada ao
Reino de Portugal e dos Algarves
em 1826 são definidas de forma clara nos artigos
7º e 8º as regras para aquisição e perda da condição de cidadão português havendo
lugar, tal como sucede no texto outorgado
pelo mesmo monarca ao Império do Brasil em 1824, a um condicionamento em função da posição de cada indivíduo acerca
da independência brasileira, não sendo cidadãos portugueses aqueles que são cidadãos brasileiros. Com a
implantação da República em 1910 dá-se
um corte com a definição dos critérios de atribuição da cidadania portuguesa
nos textos constitucionais
portugueses, sendo o tema completamente ignorado no texto de 87 artigos aprovado
como Constituição da República Portuguesa em 1911. Tal era
consonante com aquilo que sucedia na constituição
republicana de referência na Europa de então, a francesa de 18754, mas dissonante com o que sucedia na
primeira constituição republicana escrita em
português e então em vigor, a constituição brasileira cujo presidente até se encontrava presente em Lisboa aquando do golpe republicano de 19105.
Na Constituição da República Portuguesa
de 1933, composta por 142 artigos, lê-se no artigo 7º que «A lei civil
determina como se adquire e como se
perde a qualidade de cidadão português». Por último, a ainda mais longa
Constituição da República
Portuguesa em vigor
desde 1976 e que atualmente conta com 296 artigos (face aos 312 do texto original), então
pese o elevado detalhe com que trata algumas
matérias, limita-se no seu artigo 4º a declarar «cidadãos portugueses todos
aqueles que como tal sejam
considerados pela lei ou por convenção internacional», redação que se mantém inalterada desde 1976 e, que é
reforçada pela alínea f) do artigo 164º que considera exclusiva competência da Assembleia da República
legislar sobre a «Aquisição, perda e reaquisição da cidadania portuguesa». Tal delegação ao poder legislativo converge com aquilo que sucede nas atuais redações de
outras constituições europeias, como a espanhola de 1978 (artigo 11) ou a francesa de 1958 (artigo 34º). No
entanto, diverge no que diz respeito às constituições
mais recentes de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa como Angola ou Moçambiques ou a de Timor-Leste
(PALOP-TL)6, textos muitas vezes elaborados com o apoio técnico português. A história portuguesa do século XX ajuda a explicar as hesitações do Direito Constitucional em definir o
que é Ser Português: trocas de regime, sucessivas mudanças na relação
com os territórios ultramarinos e seus habitantes até à completa
independência destes, com a emergência da emigração em massa dos
Portugueses para novos destinos que
não as terras ultramarinas ou que já o haviam sido, como o Brasil. Mas as incertezas do Direito Constitucional ou mesmo as divergências
políticas que existem em torno das
condições de aquisição da nacionalidade portuguesa não nos devem conduzir à precipitação de considerar o Ser Português
como uma realidade indefinível ou inexistente para além do plano político-administrativo.
O Direito
sobre a Nacionalidade, quando respeitante a uma população independente e soberana nas suas decisões, é consequência
da forma como essa mesma população concebe o
Mundo, quer na perspectiva do Outro quer na
definição do Nós. Essa concepção não é necessariamente pois é influenciada por uma miríade
de factores. No caso
português, a História será o melhor
auxiliar para expormos esses mesmos factores. Desde logo, quando surgem os Portugueses? Sob os dois
primeiros reis portugueses, D. Afonso Henriques e D. Sancho I, o monarca era geralmente intitulado "rei dos
Portugueses" e não "rei de Portugal" (rex Portugallensium por oposição a rex Portugalliae), algo que não tendia suceder
nos outros reinos hispânicos7. Não nos iludamos quanto à
existência de uma consciência nacional nos moldes da actual já
no século XII. Os “Portugueses” de que D. Afonso Henriques seria rei seriam sobretudo os senhores que o
haviam apoiado no processo de autonomização face à Galiza e a Leão. Mas também não consideremos que a consciência
nacional portuguesa só surge no século XIX ou depois,
como em muitos outros povos da Europa
Ocidental. Ao longo da primeira e segunda dinastias, a
segurança dos limites do território submetido ao rei de Portugal asseguraram o desenvolvimento pleno de uma
nacionalidade no que fora outrora um simples
rectângulo no Ocidente
da Península Ibérica.
Do galaico-português desenvolveu-se uma língua nacional
na qual escreveram vultos como Fernão Lopes, D. Duarte, Gil Vicente ou, mais
destacadamente, Luís Vaz de Camões. Aquando da morte de, concomitante do início da Monarquia
Dual, o Ser Português já estaria definido.
O futuro rei
D. Filipe II podia ter do seu lado os mais variados factores de legitimidade dinástica. No entanto, tal não foi suficiente para que em pontos tão distantes entre si como a ilha Terceira ou a cidade de Macau, houve Portugueses que se recusaram a aceitar um rei que não partilhava com eles essa mesma condição de Ser Português. E se em 1581 estas aspirações foram abafadas e suprimidas como violência, em 1640, no dia que é em grande medida a razão de ser da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, voltaram os Portugueses a contar com um dos seus no lugar de autoridade maior da Nação. Mas no âmbito deste ensaio sobre o que é Ser Português há algo que temos de destacar, mais ainda do que o feito dos Conjurados: que no pós-1º de dezembro de 1640 a quase totalidade de um território e de um povo espalhado por quatro continentes tenha aderido com as suas forças à causa dos Conjurados. Tal é a suprema demonstração da prevalência e força do sentimento de Ser Português já no século XVII. Com a exceção notável de Ceuta8, territórios na Europa, na América, em África e na Ásia aderiram quase que em simultâneo a uma mobilização contra o maior poder imperial de então protagonizada por algumas dezenas de homens numa pequena parte do mesmo. Compare-se tal com as dificuldades que o General de Gaulle teve em convencer diversas partes do Império Francês em juntar-se à causa da França Livre no decurso da II Guerra Mundial, mesmo quando a capacidade de projecção de acção alemã em relação a esses territórios era vastamente inferior à britânica ou, mais tarde, à americana. Há pois algo único, não só na História Portuguesa, mas também na Mundial, nos feitos de 1640 e dos anos seguintes. A unidade portuguesa, a adesão a larga escala ao Ser Português manteve-se no futuro. Hoje o Português é a única língua que sendo oficial em quatro continentes distintos não o é em dois países territorialmente contíguos. Ser Português é pois ser, de livre e espontânea vontade, membro de uma comunidade que efectivamente partilha um conjunto de caraterísticas, um passado e um futuro. Ao contrário do que sucedia no passado, Ser Português não significa estritamente habitar ou ser natural território de Portugal. Foi em Portugal que se formou o povo português. Em qualquer parte do mundo que estejam, os Portugueses não deixam de ter a sua origem, mesmo que meramente espiritual, no território do Reino cuja independência foi solenemente afirmada no dia 14 de agosto de 1385. Nele se moldaram a língua, os costumes, tradições e demais atributos dos Portugueses. Dele se iniciou o processo da expansão europeia que levou a um crescimento exponencial do território do Reino de Portugal. Mas hoje, há a certeza de que, mesmo que um cataclismo devastasse o território nacional, Portugal continuaria através daqueles que, mesmo que não o consigam explicar detalhadamente, se sentem e São Portugueses.
Carlos Andrade Silva
Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"
ENSAIO
Edição 2021
NOTAS:
[1]
Conforme
disponibilizada em https://www.parlamento.pt/Parlamento/Documents/CartaConstitucional.pdf, última
consulta em Março
de 2021.
[2] Conforme publicada em
https://www.parlamento.pt/Parlamento/Documents/CRP-1933.pdf, consultado pela
última vez em Março de 2021.
[3] Para aceder ao texto originário da CRP de 1976 consultámos a
versão disponibilizada em https://www.parlamento.pt/parlamento/documents/crp1976.pdf,
para o texto connstitucional na sua forma actual seguimos
https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx.
Ambos as ligações foram verificadas pela última vez em Março de 2021.
[4] Consultada a versão disponibilizada em linha pelo Conselho Constitucional francês em
https://www.conseil-constitutionnel.fr/les-constitutions-dans-l-histoire/constitution-de-1875-iiie-republique.
Ligação verificada pela última vez em Março de 2021.
[5] Consultada a versão disponibilizada na página da Presidência da
República brasileira em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm, sendo que
o artigo da Constituição brasileira de 1891 que regula a cidadania brasileira é
o artigo 69.
[6] Constituições dos PALOP-TL consultadas e respetiva porção que
trata da questão da nacionalidade: Angola: artigo 9º da CRA de 2010
(https://governo.gov.ao/fotos/frontend_1/editor2/constituicao_da_republica_de_angola.pdf);
Moçambique: artigos 23º a 32º da CRM de 2018 (https://www.portaldogoverno.gov.mz/por/content/download/194/1138/version/2/file/constituicao.pdf);
Timor-Leste:
artigo 3º da Constituição da CRDTL de 2002
(http://www.unesco.org/education/edurights/media/docs/7aa8c8cd63d2e3ec8a6546d6ba1f4071161ce516.pdf.Por
oposição a estes três documentos, a constituição em vigor em Cabo Verde de 1992
trata no seu artigo 5º a questão da cidadania cabo-verdiana em modos
praticamente idênticos aos que a CRP de 1976 trata a nacionalidade portuguesa
(vide https://www.governo.cv/documentos/constituicao-da-republica/)..
[7] Conforme MATTOSO, Identificação de um País. Oposição -
Composição. Ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325, Lisboa, Temas e
Debates - Círculo de Leitores, 2015, pp. 788-789 (Ed. original: Lisboa,
Editorial Estampa, 1985-1986).
[8] Sendo de notar que Ceuta,
mais do que deixar de ser portuguesa, optou por manter a fidelidade ao então
rei de Portugal D. Filipe III.
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