O que é Ser Português - Rui Galiza

 

Vivemos tempos complexos. Tempos marcadas por guerras culturais e ascensão de extremismos políticos, onde termos e noções como fake news, cancel culture, pós-verdade ou cultura woke constarão na extensa lista dos objetos da análise que, certamente, dentro de anos não se deixará de se efetuar.
Mas deixando tal análise para o tempo adequado que haverá de vir, a abordagem de algo tão complexo como “ser português” hoje tem quase obrigatoriamente de ser enquadrada no âmbito da guerra cultural que se desenrola, guerra ampliada por essa lupa que aumenta a(s) realidade(s) constituída pelas redes sociais.
Será este o angulo de análise pelo qual aceito este desafio proposto pela Sociedade Histórica da Independência de Portugal, com este pequeno exercício sem outra ambição que não seja a de contribuir eventualmente para o debate que o próprio mote deste concurso acaba por constituir.

Importa ainda referir que abordar esta temática, mesmo que reduzida e enquadrada sob o ângulo anteriormente referido, acaba por ser um verdadeiro desafio à capacidade de síntese. O grau de complexidade do que está em questão obriga assim necessariamente a recorrer a esse exercício que pode ser denominado de “resumo do resumo”. Fica o aviso.

O Ser Português e a Guerra Cultural

Definir algumas características da guerra cultural que se desenrola atualmente, no âmbito do já enunciado princípio do “resumo do resumo” é um desafio per si, mas que penso não deixa de ser necessário. Fica desde já o aviso que o recurso a meios “pouco académicos” e o apelo a uma certa imaginação por parte do leitor serão usados nesta tentativa. Aqui vamos…

Existem, em termos muito gerais e necessariamente “simplistas”, duas visões que se digladiam no espaço público. Mas apesar da simplificação referida a coisa é complexa pelo que se aplica aqui lançar mão aos recursos “pouco académicos” anteriormente referidos… Imaginemos um ringue de boxe, em que o speaker de serviço ocupa o centro do mesmo e, pegando no microfone de estilo retro que desce algures do teto, anuncia enfaticamente:
“No canto esquerdo, perfeitamente convicto que as identidades nacionais devem dar lugar a identidades fluidas e gerais, absolutamente convencido que símbolos nacionais, como bandeiras e hinos, deixarão de fazer sentido e que o derrotar dos males do país, quiçá da humanidade, passa por uma linguagem neutra imposta por poderes públicos, abordagem da ‘história dolorosa’ e desconstrução das narrativas nacionais, o vosso aplauso para o pós-modernista!!!


No canto direito, do alto da sua crença que ‘antigamente é que era bom’, que Portugal sempre foi um colonizador bondoso como o demonstram as teses do lusotropicalismo e que há que hierarquizar a população deste país entre ‘portugueses de bem’ e outros que não o são, o vosso aplauso para o nacionalista animado pela ascensão da extrema-direita!!!”

Falta todo o resto da sociedade, certo? É verdade, falta. Aliás o resto da sociedade nem vai a combate nem será propriamente beligerante. Já falámos aqui das redes sociais e da sua característica de lente que aumenta, e promove, realidades. Não será assim de admirar que o acicatar do tribalismo e a tendência para o enclausuramento em guetos epistemológicos e identitários de quem, no âmbito desta guerra cultural, sobe ao ringue, seja hoje uma realidade. Mas para além da imagem do ringue de boxe, em que “cenários de guerra” decorre este confronto? O que vem a ser o tal já referido “espaço público” onde pululam esta espécie de influencers do passado, do presente e do futuro?

Deixando de lado generalizações segundo as quais o debate será omnipresente e decorre em todo o lado, será justo apontar para além das já referidas redes sociais, os media tradicionais e a academia como os locais, ou instrumentos, mais relevantes para o desencadear desta guerra. Particularmente interessante será o que se passa ao nível da academia. E vamos lá a outra imagem…

Imaginemos agora que atingimos uma situação daquelas complicadas, que configuram um retrocesso civilizacional. Por exemplo, uma situação em que quem investiga e produz/transmite conhecimento, se sente tão maniatado e ameaçado nessa sua ação que não vê outra alternativa que não seja publicar as conclusões dos seus estudos e investigações sob pseudónimo com o objetivo de evitar represálias, sendo o rigor científico assegurado pela respetiva revisão dos seus pares. Bem, neste caso podemos parar de dar largas à imaginação. Isso já aconteceu sob a forma do “Journal of Controversial Ideas” cujo objetivo, segundo um dos seus promotores, passa por permitir a todos os investigadores, cujas ideais e conclusões possam provocar problemas, publicar as mesmas sob proteção do anonimato. Aliás, na entrevista de lançamento da ideia, Jeff McMahan, Professor de Filosofia Moral da Universidade de Oxford, foi mesmo mais longe, especificando que "o medo vem da oposição sofrida pelos pesquisadores, tanto por parte da direita quanto da esquerda. As ameaças de fora da universidade tendem a vir mais da direita. E as ameaças à liberdade de expressão de dentro da academia costumam vir mais da esquerda"[i].

Esta realidade, que levou inclusive ao “cancelamento” do exercício de imaginação que chegou a ser encetado (por vezes a realidade supera a ficção, mesmo em termos de distopia…), decorre principalmente no mundo académico anglo-saxónico. Entre nós ainda não se faz sentir com grande intensidade. Existem centros de estudos apontados como partidários do boxeur sentando num dos cantos do ringue, mas digamos que não estalou qualquer verniz. Será uma questão de tempo. Mas o combate na academia já viajou do novo mundo para as Ilhas Inglesas e de lá tentou atravessar o Canal da Mancha, onde parece ter enfrentado a oposição de irredutíveis gauleses. De facto, no país de Asterix, e na sequência da bárbara decapitação de um professor às mão de um fundamentalista religioso, foi colocada por um grupo de académicos de renome a seguinte questão (e voltemos ao “resumo do resumo”): não será a difusão da ideia segundo a qual o mundo ocidental é culpado pelos males do mundo, devendo os seus atuais cidadãos benificiários da tal ‘história dolorosa’ encetar um processo de admissão da culpa, expiação de pecados e ações reparadoras, uma espécie de “discurso do ódio” que faz com que um fanático se sinta à vontade o suficiente para cometer um ataque bárbaro em plena luz do dia?

Seguiram-se declarações dos responsáveis locais pela educação, manifestos e abaixo-assinados (enfim, o costume…) e aguardam-se as cenas dos próximos capítulos.

Mas se entre nós, a nível académico, como referido não estalou o verniz e, para já, as propostas em cima da mesa passam por alterações aos conteúdos programáticos destinados aos mais jovens e perfeitamente aceitáveis à luz de qualquer lógica racional e humanista (comparar o comércio de seres humanos com o de especiarias, sem qualquer contextualização, será de facto uma aberração), a contenda tem feito o seu caminho, com destaque para o espaço público constituído por estátuas e monumentos.
As recentes polémicas em relação ao ressuscitar de buchos, pomposamente denominados “brasões florais”, há muito falecidos de morte natural sem que ninguém tenha dado pela sua falta a não ser certas carpideiras do antigamente, e a solução talibã proposta por um progressista deputado da maioria parlamentar em relação ao padrão dos descobrimentos, são certamente os exemplos que melhor ilustram essa realidade e que, entre nós, têm rebocado um debate em que, mais uma vez, as minorias em contenda ocupam um espaço desproporcionado, assumindo um papel de novos “grandes educadores da classe operária”…

Já nos chamados media tradicionais tem-se assistido, se não a uma contenda, a fenómenos curiosos, com órgão de comunicação e jornalistas, mais ou menos premiados, a optar por uma espécie de “jornalismo de causas” em detrimento do jornalismo na aceção tradicional do termo, e que passa, por exemplo, pelo princípio do contraditório nos artigos noticiosos que afloram temas que se enquadram na guerra em curso.
Recentemente surgiu um caso paradigmático, quando o provedor do leitor do “Público” deu razão à reclamação de um leitor perante uma peça sobre a construção de um “memorial aos combatentes do ultramar” na cidade do Porto[ii], considerado pelo provedor um caso de one side view, uma visão unilateral do tema abordado por parte de quem assina o artigo.

Mas não será tanto ao nível da “notícia” mas mais ao nível da “opinião” que os media, no seu papel de “editores do espaço público”, mais têm claudicado. E vamos a mais um “resumo do resumo”.

Mesmo na chamada “opinião”, é, ou deveria ser, obrigação de um jornal o controlo da veracidade dos factos que suportam essa mesma opinião. Quem já passou pelo crivo de publicar artigos de opinião em alguns jornais internacionais, saberá perfeitamente que, por vezes, é exigida comprovação de factos e relações causa-efeito invocadas nesses mesmo artigos. No nosso pequeno meio, quiçá devido a constrangimentos financeiros, a figura do editor de opinião não prolifera. E assim proliferam artigos de opinião não sustentados por fatos, mas somente pelos fins a alcançar ou mensagem que pretendem transmitir independentemente da mesma ser apoiada por essa coisa fora de moda designada por factos.

O resultado, para quem está atento a esta realidade, costuma ser algo entre o dramático e o cómico. Do historiador que defende que a escravatura está sobrevalorizada nos seus efeitos acuais, ao cientista social que com base num relatório extrapola que os portugueses são racistas esquecendo todos os outros relatórios cujas conclusões apontam que não será bem assim, passando pelo ativista que conclui perante o projeto de recrutamento de novos membros para as forças policiais estar o país num processo securitário, sem mencionar o número de agentes que está previsto que saiam dessas mesmas forças por motivos de reforma, o cidadão está desamparado perante quem parece considerar que os fins justificam os meios, entre as fake news dos que se sentam num canto do ringue e a verdade parcial recortada de forma conveniente do que se sentam no canto oposto.

A alegação que não se pode interferir na opinião de quem publica surge como a habitual resposta dos media perante esta sua carência. Mas é uma justificação que sabe a pouco.
Em resumo, da análise dos palcos onde se desenrola esta guerra, extrai-se uma conclusão: o cidadão comum, aquele que é o objeto da ação dos guerrilheiros culturais, está à mercê de quem berra mais alto.

 

O Ser Português Hoje

Traçado o quadro, mesmo que em traços muito gerais, do contexto que afetará o sentir nacional na situação presente, o Ser Português pode constituir um desafio.
Se as narrativas nacionais são um obstáculo para que o mundo “pule e avance”, se os portugueses são portadores de um pecado original hereditário que os deverá obrigar a um pedido de desculpa pelos pecados dos seus tetra-tetra-tetra avós e ao respetivo comportamento reparador (quando um conceito profundamente fascista é adotado por forças supostamente progressistas, talvez não fosse má ideia essas forças pararem para pensar…), a consequência poderá passar pelo atirar da defesa dos sentimentos positivos do Ser Português para um determinado campo de contenda mesmo nada aconselhável. São os efeitos da proliferação do tribalismo e da cultura woke, segundo os quais se não concordas comigo é porque concordas com “os outros”.
Restará assim a promoção da verdade, alicerçada em factos, sobre quem são os portugueses hoje. E lá vamos a mais um “resumo do resumo”…

O primeiro ponto a estabelecer é o seguinte: os portugueses não são filhos de um império colonial. São enteados.

Para quem tenha dúvidas sobre o carácter eventualmente perentório da anterior afirmação, nada melhor do que a confirmação da mesma através da frieza dos números no que aos índices de desenvolvimento diz respeito, adquirindo neste contexto particular importância, por razões óbvias, a situação na saúde e na educação.
Mortalidade Infantil - Em 1970 a taxa atingia 55,5‰ em Portugal, cerca do dobro do valor atingido pelos países UE27 para o mesmo período[iii]. Já no que diz respeito à esperança média de vida à nascença, em 1970 a mesma situava-se nos 66,7 anos em Portugal. Não existem dados aqui da média da UE 27 à data, mas verificando dados existentes para os países UE27 para a mesma data, Portugal apresentava o valor mais negativo[iv]   Em ambos os indicadores, atualmente os resultados de Portugal estão acima da média da UE27.

Educação - “Em meados do século passado (XX), Portugal encontrava-se numa situação mais desfavorável do que a dos países do norte europeu em meados do século XIX”, refere o estudo do INE “50 anos de Estatísticas da Educação” sobre a situação do analfabetismo. E, de facto, em 1970 Portugal ainda apresentava uma taxa de analfabetismo de 25,7%, mais do que 1/4 da população analfabeta. Segundo um estudo da UNESCO publicado em 2013, pela década de 70 a taxa de analfabetismo em Portugal superava mesmo a verificada na América Latina (23,6%), encontrando-se a anos luz da europeia[v]. Em 1970 a taxa de frequência do ensino superior (jovens 28-24 anos) era de 3,2%[vi]. Salto no tempo e temos em 2019 36,9% de frequência do ensino superior entre os 25-34 anos de idade, o que corresponde a -2,3% em relação à média da UE27 para o respetivo escalão etário[vii]. De de acordo com uma nota do Gabinete do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, publicada em agosto de 2019 aquando da candidatura à primeira fase de acesso ao ensino superior, em Portugal a frequência do mesmo por parte de jovens com 20 anos de idade era de 46%[viii], enquanto o país se tornou na estrela ascendente do Programme for International Student Assessment[ix] da OCDE.

Enveredando por outros indicadores, do saneamento básico à cobertura da rede elétrica, o panorama era igualmente desolador, mas considerando a saúde e a educação como indicadores chave no que ao desenvolvimento humano diz respeito, a conclusão será óbvia: Não, antigamente não era “bom”. E não, privilégio é uma noção completamente descabida para adjetivar a forma depauperada como a esmagadora maioria da população portuguesa chegou ao fim do império colonial. Voltando às tentativas de resumo, não será exagerado afirmar que o grosso da população portuguesa chegou a 1974 com um horizonte de futuro que oscilava entre a miséria entre-portas, a guerra em países que nunca foram os seus e o bidonville em Paris.

A situação acima descrita estará provavelmente na base de uma realidade apontada por pensadores, como Eduardo Lourenço. Na realidade, e ao contrário da espécie de “depressão coletiva” que afetou o nosso único vizinho aquando da perda do império (cuja chamada “geração de 1898”[x] será o maior reflexo do respetivo trauma), em Portugal tal perda não configurou qualquer espécie de crise de identidade nacional. Num regresso rápido aos números, até os cerca de 500.000 crismados de retornados foram largamente suplantados pelo número dos tais que prefeririam o bidonville.

A perda da missão providencialista e histórica de Portugal, ou melhor, a perda da suposta missão história de um país, definida nas profundezas do estado novo pelo ora célebre ora famigerado cardeal Cerejeira, como uma história que “pertence a Deus, enquanto dilatámos a Cristandade, levando o conhecimento do nome verdadeiro de Deus até às remotas paragens do Japão, onde o sol nasce, e até às selvas virgens do Novo Mundo, onde ele se põe”[xi], não provocou na realidade qualquer crise identitária. Para a esmagadora maioria do país, Angola não era nossa mas sim um local distante…

Findo o império colonial Portugal virou-se para o “destino Europeu”, o destino que foi o refúgio escolhido por grande parte dos Portugueses fugidos do fascismo nos anos que antecederam o fim do império colonial. Logo em 1976, num discurso proferido no Conselho da Europa, o então ministro dos negócios estrangeiros José Medeiros Ferreira não poderia ter deixado tal novo desígnio mais claro, ao proferir que “Portugal volta por fim oficialmente à convivência com a Europa” configurando o “regresso de Portugal às suas raízes continentais” que seriam a nova “consciência do nosso destino histórico”[xii].
O novo desígnio não foi contestado. Os portugueses queriam viver “à europeia”, viver com conforto, poder estudar, viajar. E quem os pode criticar?

Permaneceu, entre certas elites, a necessidade de perpetuar a ideia do passado colonial diferente, assimilador, de rosto humano. Afinal havia que acolher um contingente estimado em 5% da população cuja integração pacífica passava por não colar aos mesmos uma ideia de amigos do império colonial e do fascismo responsável pela miséria. A tarefa não foi complicada. Os baixíssimos níveis de instrução ajudaram na difusão da mesma, da mesma forma que o incremento dos níveis educacionais levam à sua rejeição. Se outrora numa frase atribuída a Miguel Torga, se defendia a ideia que não existiam portugueses com o 9º ano de joelhos em Fátima, hoje não haverá portugueses com formação académica que acreditam que o império colonial português “foram oceanos de amor”.

Aos portugueses resta viver bem, e com todo o conforto, com a memória do astrolábio e do navio negreiro, com a imagem da coragem dos que partiam numa aventura só comparável à exploração espacial e dos horrores que praticaram à luz dos valores dos tempos que eram os seus.

Não é complicado. É que perante a incompreensão das tribos em contenda anteriormente referidas, até já o fazem.

 

Rui Galiza

Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"

ENSAIO

Edição 2021



 

Notas:

[iii] Taxa de mortalidade infantil em Portugal e União Europeia “Fonte: Xavier Barreto & José Pedro Correia, Mortalidade Infantil em Portugal: evolução dos indicadores e fatores associados de 1988 a 2008, Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2014, pág. 48”

[v] Reading the past, writing the future - Fifty years of promoting literacy, UNESCO, 2017, pág 25

[vi] Alguns dados sobre o Ensino Superior em Portugal, João Peixoto, Revista Crítica de Ciências Sociais, Nº 27/28, Junho 1989, pág 183

[ix] Programme for International Student Assessment (PISA), desenvolvido pela OCDE, programa concebido para avaliar se os alunos de 15 anos conseguem mobilizar as suas competências de Leitura, de Matemática ou de Ciências na resolução de situações relacionadas com o dia a dia.

[x] Generación del 98: denominação dada a um grupo de escritores, poetas e pensadores espanhóis  profundamente afetados pela crise moral, política e social subsequente à derrota militar na Guerra Hispano-Americana e à perda de Porto Rico, Cuba e Filipinas em 1898.

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