Descobrimentos e Globalização O «Quinto Império» como Globalização Cultural - Luís Miguel Almeida


«Em Portugal, os rios originários de Espanha vão desembocar no mar. Pode crer-se que a Espanha, por ter os rios, deveria ter igualmente a ligação com o mar; mas, neste contexto, Portugal desenvolveu-se muito mais. 0 mar fundamenta um modo próprio de vida. 0 elemento indeterminado proporciona-nos a representação do ilimitado e do infinito e, quando o homem se sente nesta infinidade, é instigado a ir além do limitado. A terra e o vale fixam o homem ao solo; entra assim numa quantidade infinita de dependências. Mas o mar levao para além deste círculo limitado. 0 mar suscita a coragem; convida o homem à conquista (...)» G. W. F. HEGEL, A Razão na História. Introdução à Filosofia da História Universal, p.163.

 

Que melhores palavras poderiam inaugurar esta intervenção que se propõe versar sobre o impacto que as Descobertas dos Povos Ibéricos tiveram na formação do novo espírito científico, verdadeira alma do fenómeno actual da globalização, inaugurado pela modernidade? Estas asserções pertencem a Hegel, vulto do pensamento ocidental, expoente do idealismo, mas atento às peculiaridades das várias nações que compõem o mosaico terrestre. Apesar do predomínio da racionalidade abstracta sobre a materialidade empírica no sistema filosófico deste cidadão de Estugarda, não deixamos de apreender nas entrelinhas destas considerações a primazia da práxis sobre a teoria na mentalidade do Povo Português, quiçá lento a especular mas lesto a obrar. E a gesta dos Descobrimentos vem até dar razão a Goethe que dizia, com acerto, no seu clássico Fausto, que «ao princípio era a acção!».

Pois bem, antes de Copérnico supor que o sistema heliocêntrico prevaleceria sobre o sistema geocêntrico, antes de os génios da física, da astronomia e da filosofia provarem a esfericidade da terra, os Portugueses corroboraram in loco estas verdades que para nós, hoje, são axiomas para futuras e duradoiras descobertas. Usando uma tecnologia relativamente simples e rudimentar, herança parcialmente tributária do Mundo Árabe, e animados pela crença num Deus uno  que não raras vezes se confundiu com um Deus único resultado da nossa mundivivência religiosa, influenciada simultaneamente pelo Judaísmo, mas sobretudo pelo Catolicismo, rasgamos oceanos à procura de riquezas materiais, mas também à procura de outras gentes, distintas de nós por partilharem outros costumes e tradições.

Esta busca do outro, mais do que o seu domínio, sempre constituiu marca distintiva da nossa diáspora ultramarina, não obstante também termos incorrido em algumas falhas de humanidade que foram, por certo, muito mais exacerbadas pelos nossos congéneres setentrionais. Prova do que acabo de dizer constitui, por exemplo, a abolição da escravatura, facto jurídico que foi inaugurado por gente lusitana em 1836 e plenamente consumada em 1869. Portugal poderá conhecer algum atraso científico-tecnológico em relação aos países mais desenvolvidos, mas, em humanismo e tolerância, temos exemplos edificantes na nossa já longa história, circunstância que nos coloca em honrosa posição no ranking mundial. Hegel corrobora, aliás, na obra já citada, o que acabo de dizer: «A debilidade do natural americano foi uma das causas principais do transporte de Negros para a América, a fim de com as suas forças realizarem os trabalhos. Com efeito, os Negros são muito mais receptivos à cultura europeia do que os índios. Os Portugueses foram muito mais humanos do que os Holandeses, os Espanhóis e os Ingleses. Por isso, nas costas do Brasil houve sempre uma maior facilidade para adquirir a liberdade, e existia aí uma grande quantidade de Negros livres.» (op.cit., p.68)

Fomos nós, pois, Portugueses, raça de gente simples e lutadora, povo com as fronteiras territoriais mais antigas da Europa, os primeiros a desafiar a fúria dos elementos. Se os Gregos pensaram a arché do Universo, a substância primordial que estaria na origem do Mundo, do Homem, da Vida, nós entramos na imanência desta arqueologia ao darmos Novos Mundos ao Mundo, permitindo, num golpe de asas, que a Humanidade tomasse consciência da sua unidade. Para o efeito, usamos de astúcia e de inteligência, qualidades-chave dos guerreiros e dos sábios. Situados na orla ocidental da Europa, promontório onde a terra acaba e o mar começa, desde muito cedo fomos impelidos para a «ventura» do nosso fado. A nossa indigência económica motivou esta crescente audácia, e a nossa inquietude intelectual foi também determinante no descobrir, por mar, da fonte das riquezas que aportavam à Europa pelo Mar Vermelho. Na realidade, a necessidade aguça o engenho e até chega a equilibrar orçamentos deficitários, coisa que os governantes de hoje parecem incapazes de fazer por falta de audácia política, não de recursos económicos!

Em Quatrocentos, lançamo-nos na busca do Infinito e construímos o Império da Língua Portuguesa. Semelhante construção conheceu os seus momentos de vicissitude e de glória, mas, volvidos cinco séculos sobre tão extraordinária façanha, o balanço é francamente positivo. Apesar da nossa economia estruturalmente dependente, e da nossa insuficiência demográfica, lançamo-nos no mar ignoto à procura de riquezas, na sua fonte, e do Preste João, ilustre sultão da Abissínia, actual Etiópia, o mais antigo reduto cristão em pleno terreno islâmico. Esta iniciativa vem provar a enorme familiaridade que a Nação Portuguesa tem com o Mar, mais do que qualquer Nação Europeia, e o consequente desejo de descoberta, mais do que o de domínio inscrito na nossa herança biocultural. O encontro de culturas que entretanto se verificou só foi possível porque nós, Portugueses, na maioria das circunstâncias, não impusemos coercivamente a nossa visão do mundo aos povos com quem contactámos. Pelo contrário, fomos mais pontes que muros, e a prova está diante dos nossos olhos nos dias de hoje: os esforços diplomáticos desenvolvidos pelas autoridades políticas, e que envolvem antigas colónias lusas, contam com a nossa mediação. É certo que nem sempre com os melhores resultados, porque a linguagem do ter se sobrepõe à linguagem da partilha e do ser, como acontece infelizmente com Angola, onde a luta pelo poder caminha lado a lado com a posse pelas mais importantes valias daquele fértil território: o petróleo, os diamantes, o ferro, os próprios rios, determinantes nas suas elevadas potencialidades agrícolas.

Como outrora dissera numa sessão cultural na Universidade do Minho, onde se falava sobre o carácter histórico, e não apenas novelístico, da obra de Miguel Torga intitulada O Senhor Ventura, escrita em 1943, tese, aliás, defendida por um professor britânico, o «Quinto Império», de que nos falavam António Vieira e Fernando Pessoa, prescinde de Imperador, pois semelhante edificação pressupõe que o Reino de Cristo se torne imanente à própria diáspora humana neste mundo. Se Antero de Quental fosse vivo, e comungasse das experiências dramáticas por nós sentidas e vividas, nesta era de anónima globalização  que se traduz, simultaneamente, na generalização da riqueza e da pobreza reproduziria as palavras com que terminou a sua intervenção nas malogradas Conferências do Casino: «O Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo: a Revolução não é mais que o Cristianismo do mundo moderno.» Neste Império, o da Língua Portuguesa, imortalizada por vários pregadores, escritores, sábios e cientistas, aquele que manda é como aquele que serve. Logo, as hierarquias sociais são algo de acidental, pois os seres humanos nascem para serem livres e felizes. Esta liberdade e esta felicidade só no Cristianismo encontra a sua plenitude e suma realização. Cristo, ao nascer, tornou-se nosso irmão e quer que nós, género humano, nos tornemos também irmãos, amando inclusive aqueles que nos odeiam e nos perseguem.

O Império da Língua Portuguesa, a que me refiro na parte introdutória, pressupõe o fim de toda e qualquer forma de totalitarismo e de fundamentalismo, seja ele religioso, étnico, económico ou político. Este Império consiste no primado da Diferença sobre toda e qualquer forma de homogeneidade cultural. Hoje, no dealbar de um novo século, no início de um novo milénio, assistimos, com alguma apreensão, ao perigar desta biodiversidade linguística e cultural devido ao fenómeno ambivalente da globalização, que fala apenas a linguagem redutora do progresso material ou do lucro, secundarizando a sua vertente espiritual e humana. Creio que Portugal, em particular, e a Europa, em geral, têm um importante papel a desempenhar na humanização deste mundo que, num ápice, se tornou, numa singular mas distante aldeia global. Como bem intuiu Habermas na sua mais recente obra filosófica, a maior riqueza da Europa é o seu multilinguismo. Não obstante nos tornarmos muito em breve num espaço homogéneo em termos económicos, mantemos esta diversidade sociocultural que constitui, sem hesitações, a nossa maior riqueza, pois nela está implícita uma visão do mundo irrepetível e inapagável da nossa memória colectiva.

Se a Europa, num passado remoto e recente, usou a ciência e a técnica como armas para subjugar outros povos, deverá, hoje, do meu ponto de vista, usá-las para ajudar essas Nações a libertarem-se do seu subdesenvolvimento económico para que nós, também, nos possamos libertar do não menos miserável subdesenvolvimento ético. Numa era em que tudo está globalizado devido aos avanços meteóricos no campo da electrónica, urge potenciar as sinergias afectivas, de modo a minorar as carências biológicas de tantos irmãos nossos que morrem de fome. De facto, o capitalismo corre, hoje, o risco de ser tão nocivo como o comunismo, pois tende a reduzir a beleza e a complexidade da vida humana a uma mera e frustrante questão de ter, mais do que a transcendente e vital questão de ser. Na verdade, a liberdade humana estará em larga medida coarctada se o Homem Ocidental olhar apenas para o seu umbigo, ou para questões que se prendem com a mera imanência. Ser humano implica contínuas ultrapassagens tendo apenas como referência o Infinito, realidade, afinal, não tão inteligível ou utópica como Platão nos queria fazer crer. Somos projectos e sementes de Absoluto que nascerão num Amanhã incerto mas, ainda assim, possível.

Dizia assim Pessoa, na sua «Mensagem» (p.49):

 

«Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.

Deus quis que a terra fosse toda uma,

Que o mar unisse, já não separasse.

Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

 

E a orla branca foi de ilha em continente,

Clareou, correndo, até ao fim do mundo,

E viu-se a terra inteira, de repente,

Surgir, redonda, do azul profundo.

 

Quem te sagrou criou-te português.

Do mar e nós em ti nos deu sinal.

Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!»

 

          Que o Sonho do poeta seja também a nossa Utopia e que, enquanto educadores, possamos transmitir esta mensagem de paz e de amor que deveria habitar no coração de toda a ciência, tornada assim sapiência. É que de nada serve o saber se ele não nos ajudar a ser, para os outros. E quanto mais formos, mais se cumprirá Portugal e também um mundo mais justo e fraterno

 

 

Luís Miguel Almeida

Obra submetida a concurso
"O Que É Ser Português?"

ENSAIO

Edição 2021

 

 Nota: O texto não foi admitido a concurso final por não ser inédito (publicado na Revista Portuguesa de Filosofia, T. 58, Fasc. 4, Out. - Dez., 2002).

 

BIBLIOGRAFIA

 ALBUQUERQUE, Luís de  As Navegações e a sua Projecção na Ciência e na Cultura, Lisboa, Gradiva, 1987.

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 GADAMER, H.G., L'heritage de l'Europe, Paris, Editions Payot & Rivages, traduction de Philipe Yvernel, 1996.

 GOETHE, Johann W.  Fausto, Lisboa, Relógio d’Água Editores, tradução de João Barrento, 1999.

 HEGEL, G.W.F.  A Razão na História, Introdução à Filosofia da História Universal, Lisboa, Edições 70  Textos Filosóficos, tradução de Artur Morão, 1995.

 PESSOA, Fernando  Mensagem, Lisboa, Assírio e Alvim, 1997.

 REBELO, Luís de Sousa; CURTO, Diogo Ramada; EARLE, T.F.  História e Antologia da Literatura Portuguesa no Século XVI, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian- Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura, 2000.

 SILVA, Lúcio Craveiro da  Padre António Vieira e Antero de Quental. Ensaios, Braga, Universidade do Minho, Centro de Estudos Humanísticos, Colecção Hespérides/ Literatura 5, 1998.

 SILVA, Lúcio Craveiro da  Ser Português. Ensaios de Cultura Portuguesa, Braga, Universidade do Minho, Centro de Estudos Humanísticos, Colecção Hespérides/Literatura 10, 2000.

 

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